Fausto deixou-se dominar pela sede do conhecimento, pela paixão, por querer sempre mais, e acaba por vender a alma ao Diabo. É a peça de Goethe, na versão de Nerval, que estava na gaveta das encenações de João Mota e que agora achou pertinente apresentá-la. "Tem tudo o que é essencial." Os poderes, a ambição, as desigualdades, os desejos, os horrores, em representação e nas imagens da atualidade projetadas num ecrã durante a peça. Uma escolha para refletir sobre o mundo e para celebrar os 50 anos d"A Comuna, fundada no Dia do Trabalhador. Logo com a peça Para Onde Is? , de Gil Vicente, onde mistura o sagrado com o profano.."Era uma adaptação do Auto da Alma e do Auto da Barca do Inferno com tudo trocado. Começámos com o Auto da Alma, que era um auto sacramental, feito simbolicamente, em que batíamos na alma, o anjo andava de cadeira de rodas; fazíamos coisas horríveis. O Auto da Barca do Inferno era exatamente o contrário, um caixote do lixo para onde o Diabo levava as almas. Enquanto a primeira tinha o lado sagrado, a segunda era profundamente pagã, mas temos de viver com os dois lados", explica João Mota, que adaptou e encenou..Representaram-na no dia 1 de maio de 1972, há 50 anos, numa garagem emprestada perto do Saldanha. Dois anos antes do 25 de Abril, quando o questionamento se pagava com a cadeia. "Fizemos a Ceia em que de um lado estava a igreja e do outro o poder. Havia duas bancadas e a mesa no centro, com a Manuela de Freitas no meio da mesa a fazer de rede. Tirava uma bola vermelha da barriga presa por um elástico, como se fosse o cordão umbilical e o feto. Fui chamado à censura, claro. Expliquei que éramos cinco, os atores tinham que jogar pingue-pongue e escolhemos a cor vermelha para a vermos bem e um elástico para não se perder. Estávamos para ir presos." Sempre assim até ao 25 de Abril, que, sublinha o encenador, "era esperado por muitas pessoas, não só os militares"..O nome A Comuna nada tem a ver com partidos, mas com a ideia de coletivo, a forma de gerir democraticamente uma cidade, há países onde é o termo para autarquia, explica João Mota. Vem da Comuna de Paris, movimento popular que surgiu na capital francesa em 1871, e foi escolhido pelos ouvintes da Rádio Renascença, ganhando a "Cómicos" e a "Comediantes"..Uma companhia de teatro que também é formação - tem um curso -, espaço cultural e de diversão aberto a outras companhias e à população, com as escolas a serem visitas regulares. Com o 25 de Abril, participaram nas Campanhas de Dinamização Cultural e Ação Cívica do MFA. Encenavam uma situação alusiva ao público, por exemplo trabalhadores agrícolas, seguindo-se o debate. "Percebemos que tínhamos de acompanhar com o teatro, foi muito bonito", recorda Carlos Paulo, um dos cinco fundadores, ao lado de João Mota, Manuela de Freitas, Francisco Pestana e Melim Teixeira..Carlos Paulo, 70 anos, é o Dr. Fausto, que se rejuvenesce no ator Rogério Vale, aqui já em pacto com o Diabo. Ele e João Paulo mantêm-se na companhia há 50 anos. "Parece que foi ontem, não tenho essa noção do tempo. Começámos antes do 25 de Abril, foi difícil com a censura e esses problemas todos, mas fomos avançando. O sonho mantém-se. Há diferenças, felizmente, mas temos sabido acompanhar os tempos e o público também nos tem acompanhado.".Público que os ajudou a ocupar a casa onde ainda se encontram, o Casarão Cor-de-Rosa, duas semanas em que ali permaneceram de noite e de dia. Era então o Lar de Mães Solteiras da Misericórdia, depois de ter sido o Colégio Alemão. Acabavam-se os tempos da garagem e do barracão da Cervejaria Portugal. Mais tarde, a Fundação Calouste Gulbenkian, presidida por Azeredo Perdigão, financiou o espaço que se tornou a sala principal da representação..No edifício antigo existem outras salas, a parte administrativa e o bar, onde funcionava o Café-Teatro. Na cave guardam os adereços, figurinos, objetos e tudo o que têm usado ao longo das peças, um espaço que ardeu há 22 anos e que acaba de renascer. É galeria das representações da companhia e onde vão buscar os materiais para as novas peças. João Mota passa pelas salas e recorda muitas das peças que fizeram e respetivos autores: João sem medo, de José Gomes Ferreira, Do Desassossego, de Fernando Pessoa (Bernardo Soares), D. João e Julieta, de Natália Correia, O Rei está a morrer, de Ionesco, etc..Cerca de 200 representadas pel'A Comuna, que participou em dezenas de festivais internacionais, percorreu centenas de localidades no país - o que estavam proibidos de fazer antes do 25 de Abril..A abertura do espaço e das ideias aos novos é outra das características, sublinham os fundadores, que também se rejuvenescem..Patrícia Fonseca é a atriz mais nova a participar na peça Fausto, tem 22 anos. Formou-se na Escola de Teatro de Cascais, fez o curso d"A Comuna há três anos. "É uma grande honra, especialmente participar na peça que comemora os 50 anos. E o João Mota é uma referência, foi professor de todos os meus professores, é uma honra estar a trabalhar com eles.".Além dos três atores citados, o elenco completa-se com Ana Lúcia Palminha, Francisco Pereira de Almeida, Gonçalo Botelho, Luís Garcia, Miguel Sermão e Hugo Franco, que fazem vários papéis. Hugo Franco, 47 anos, dá corpo ao Diabo e é quem vai encenar o próximo espetáculo: A Casa de Bernarda Alba. É um dos atores residentes desde 1997. Resume este trajeto numa palavra: "Extraordinário!".São quatro atores no total, todos com ordenados iguais, em 10 elementos que tem a companhia. Não escondem as dificuldades financeiras. Por exemplo, nesta peça deveria haver cortinas para isolar o palco da restante envolvente, mas teriam de ser em tecido não inflamável e são caras. Significa que não há nada a separar o palco e há um aviso antes de se iniciar o espetáculo: não puxar o autoclismo se forem à casa de banho, é ao lado,.É uma hora e 50 minutos em cena, com atores e público no mesmo espaço, de pé (há alguns bancos). Assistimos ao ensaio geral com as turmas de Teatro da Escola Secundária D. Pedro V. João Mota, 79 anos, sempre de pé e a analisar tudo. Isto depois das cirurgias que teve de fazer devido a um cancro. E no final ainda houve espaço para incentivar os jovens a se inquietarem. "Quando aceitam um papel, tentem sempre dar de mais e não de menos. Para que o encenador possa tirar, limpar." .ceuneves@dn.pt