"A China tem de ser parte de uma solução para a Coreia"

Entrevista a especialista da Ásia do International Crisis Group.
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O DN falou com Michael Kovrig, analista do International Crisis Group, em Macau, cidade onde viveu durante vários anos o irmão mais velho do líder norte-coreano, Kim Jong-nam, que foi assassinado no ano passado em Kuala Lumpur, na Malásia, quando se preparava para embarcar num voo para o antigo território sob administração portuguesa. A conversa decorreu numa semana marcada pelo anúncio-surpresa de duas cimeiras: uma em abril entre os líderes das duas Coreias e uma outra entre Donald Trump e Kim Jong-un.

O presidente Donald Trump aceitou o convite do líder norte-coreano Kim Jong-un para um encontro inédito previsto para maio. Ficou surpreendido com este desenvolvimento?

Esta notícia sinaliza - por agora - uma redução das tensões na península e abre caminho para a via diplomática de resolução do conflito. É algo que vemos no sentido positivo, mas deve ser temperado com sobriedade, cautela e realismo.

Em que sentido?

Estamos perante tarefas urgentes. A Coreia do Sul e os EUA devem coordenar a sua agenda em diálogo com o Japão e a China. O ónus está do lado da administração Trump, que terá de se preparar bem e nomear uma equipa credível e experiente. Os primeiros objetivos devem ser modestos: restabelecer contacto e avaliar as prioridades de cada um dos lados. Gestos concretos de boa vontade ajudarão no processo. A Coreia do Norte poderia começar por se oferecer para repatriar os restos mortais dos soldados americanos. Por outro lado, os EUA e a Coreia do Sul podiam acordar em que futuros exercícios militares conjuntos evitem gestos provocatórios como a simulação da decapitação de líderes norte-coreanos. E reiniciar o processo de reunião das famílias separadas pela Guerra da Coreia geraria um sentimento positivo em torno do processo de diálogo na Coreia do Sul.

O presidente Xi Jinping reagiu elogiando o "gesto positivo" de Trump. Qual vai ser a posição da China?

Pequim tem defendido uma abordagem dupla que passa pelo alívio das tensões e pelo regresso à mesa das negociações, daí que, no curto prazo, este é um de-senvolvimento positivo para a China. Se Pyongyang, Washington e Seul realmente começarem a preparar as cimeiras e reatarem o diálogo, isso reduz o risco iminente de provocações ou mal-entendidos que poderiam levar a um conflito militar. Trata-se de algo bom para Pequim e a China irá apoiar as negociações. A China gostaria de ver um ponto final nos testes nucleares e de mísseis por parte da Coreia do Norte, algo que desaguasse na desnuclearização da península, o fim das sanções que restringem o comércio e investimento e a normalização das relações diplomáticas.

Em Pequim há ansiedade, certo?

Sim, a China também estará preocupada acerca das enormes incertezas envolvendo qualquer encontro entre Trump e Kim. Se Trump e Kim chegam a uma acordo sem consultarem Pequim, poderemos assistir a complicações na concretização do entendimento. A China quer evitar uma guerra ou o caos na Península Coreana, mas também pretende evitar um resultado que altere o equilíbrio estratégico na Ásia Oriental a favor de Washington. A China terá de ser parte de qualquer solução de longo prazo. Pequim e Washington devem trabalhar em conjunto, mantendo pressão sobre Pyongyang através de sanções e diplomacia, ao mesmo tempo que demonstram a Kim Jong-un que há uma porta de saída, que não passa por uma mudança de regime. É importante que Washington mantenha um canal aberto com o presidente Xi e que sejam dados passos para reduzir a falta de confiança estratégica. De outro modo, existe o risco de Pequim prosseguir políticas que ponham em xeque uma solução pacífica apenas para proteger os seus interesses de segurança nacional.

Antes do esperado encontro entre Trump e Kim, está prevista para abril a primeira cimeira intercoreana em mais de dez anos. Que expectativas tem para esse encontro?

Há que esperar pela confirmação oficial de Pyongyang e é preciso ter em conta que, no passado, a Coreia do Norte fez promessas que serviram para prolongar as conversações e depois renegá-las. Mesmo a confirmar-se o encontro, creio que a Coreia do Norte não abandonou o objetivo estratégico de ser reconhecida como potência nuclear. E por razões estratégicas não quer abandonar esse caminho, pois vê-o como essencial para a sobrevivência do regime, além de ser instrumento crucial para obter vantagens em negociações. No imediato, o que Kim pretende é o alívio das sanções que estão a ter um forte impacto.

Chegamos a uma situação em que o caminho para o diálogo está reaberto. Isto deve-se mais à estratégia prosseguida pela administração Trump ou à linha conciliatória seguida pelo presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in?

O presidente Moon tem apostado na procura do diálogo desde que tomou posse, mas isso não quer dizer que seja inteiramente brando. Julgo que ele faz uma avaliação realista da situação. Para responder à questão sobre como chegámos aqui, há que dizer que a Coreia do Norte apostou alto no ano passado com os progressos assinaláveis no seu programa nuclear e de mísseis balísticos, a ponto de Kim Jong-un ter dito em novembro que o país tinha alcançado os seus objetivos. Isto era importante, além das purgas e a eliminação do seu irmão Kim Jong-nam. Após esses passos enviou a irmã Kim Yo-jong aos Jogos Olímpicos de Inverno de Pyeongchang, na Coreia do Sul, altura em que foi estendido o convite para uma cimeira.

E que avaliação faz da estratégia seguida pela Casa Branca?

Há que dar algum crédito à administração Trump, uma vez que ao elevar a questão da Coreia do Norte a uma das prioridades da sua política externa, tem conseguido apoios para o nível inédito de sanções e pressão sobre Pyongyang.

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