A casa do amor (e o final quase trágico)

Em Lisboa, durante a II Guerra Mundial, Teresa ergueu em segredo a casa dos sonhos do marido. A maqueta que António construía no sótão da D. Carlos I tornava-se realidade em A-dos-Cunhados. Quando ele a viu, não aguentou. <em>(Artigo originalmente publicado a 19 de agosto de 2018)</em>
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Era raro estar no cabeleireiro, mas no dia em que chegaram os pregos foi António que recebeu a encomenda. "Pregos para quê?", perguntou a Teresa que, interrompendo o penteado da cliente, escova e respiração suspensas, procurou uma reposta rápida que não levantasse suspeitas. "São para o Joaquim", disse a suar por dentro. António Coelho Lucas acreditou, arrumou os pregos, e seguiu a sua vida.

Dentro do Salão das Artes, na Avenida D. Carlos I, em Lisboa, Teresa Lucas respirou de alívio. O marido nem desconfiara e ela podia prosseguir com o plano secreto: construir a casa dos sonhos de António, sem ele saber, em A-dos-Cunhados, uma aldeia no Oeste, onde tinha um terreno e onde um dia - talvez depois de acabar a II Guerra Mundial e que obrigou Teresa a virar a cidade do avesso para encontrar pregos - iriam viver.

Casaram tinha ela apenas 16 anos e António era já viúvo. Teresa era uma mulher grande, cheia de energia, um pouco "explosiva". António era um homem tranquilo, muito pacato, cioso das suas obrigações, respeitador de todos os horários: "Chegava à Imprensa Nacional, onde trabalhava, sempre cinco minutos antes da hora", conta João Lucas, um dos netos.

Além de cabeleireira, Teresa Lucas era enfermeira - a Guerra assim o obrigava - e António, além de funcionário da Imprensa Nacional, era taxista. Ela ora penteava senhoras da alta sociedade, ora administrava injeções a doentes. Ele, depois de terminar o transporte de pessoas pela cidade a seguir ao expediente, noite dentro, subia ao sótão do número 111 da Avenida D. Carlos I, onde viviam com os dois filhos, e entretinha-se a construir uma maqueta da casa dos seus sonhos, aquela que iria habitar, rodeado de filhos e netos, longe da confusão da cidade.

"Lembro-me de estar no sótão a brincar com ela. Estava lá no meio de montes de coisas cheias de pó. As paredes eram feitas de madeira, o telhado de cartão canelado, as janelas eram de celofane. Já estava tudo um bocado podre, mas era de grande detalhe", lembra João Lucas, neto de Teresa e António e a quem o pai, Juvenal Lucas, contou um dia a história de como aquela casa de cartão se ergueu em A-dos-Cunhados.

Enquanto António aperfeiçoava a maqueta, a casa ia-se erguendo a uns bons quilómetros da capital. Teresa tinha juntado algum dinheiro - conta-se que António era um pouco forreta e que jamais teria aprovado aquela loucura - e contava com a cumplicidade de vários familiares que viviam em A-dos-Cunhados, onde ela e o marido por vezes iam - ora no automóvel que possuíam, um carocha preto, ora de autocarro, que a viagem naqueles dias era longa. Durante a construção da moradia, porém, Teresa manteve o marido bem longe, operando sempre na sombra.

Ninguém sabe ao certo em que ano a casa ficou pronta. Sabe-se apenas que foi ainda durante a II Guerra, que terminou em 1945. Paredes de adobe, telha francesa, bonitas janelas de madeira pintadas de branco, uma escadaria que dava acesso à porta principal e que se estendia para a esquerda e para a direita. O andar de baixo era uma adega, no andar de cima a cozinha, a sala e os quartos: um para o casal, dois para cada um dos filhos. A casa foi inicialmente rosa-velho, era essa a cor da maquete. Hoje é verde e já ninguém sabe também quem lhe mudou a cor.

O Rosmaninho e António no chão

Não iria tão grande empreitada ser mostrada ao seu inventor sem mais nem menos. Terminada a construção, Teresa Lucas começou a organizar o grande dia. Comprou os bilhetes de autocarro, mandou os filhos na frente e avisou toda a aldeia. Chegados ao Largo da Cruz, em A-dos-Cunhados, António estranhou.

Saindo do largo pela rua acima, um tapete de junco e rosmaninho, ladeado de todas as pessoas da terra. O casal saiu do autocarro e, de braço dado, como que caminhando em direção ao altar, recebiam palmas e vivas. O coração de António devia bater cada vez mais forte, Teresa devia ter o maior dos sorrisos na cara. Finda a subida, António viu-a. A casa que tinha construído no sótão ali estava, em pé, tal e qual como a maquete. Em cada uma das janelas da fachada principal estavam os seus dois filhos: Juvenal na da esquerda, José, o mais velho, na da direita.

António Coelho Lucas não aguentou a emoção. E caiu, desmaiado, aos pés de Teresa. De repente, fez-se um silêncio de morte. Desta vez, porém, Teresa não ficou em suspenso com o susto, até porque ia prevenida - conhecia o marido, sabia que era de coração frágil. Abriu a mala de enfermeira, tirou a seringa e espetou a agulha, dando-lhe uma dose de adrenalina que lhe trouxe os sentidos de volta.

Regressou António ao mundo dos vivos, regressou a festa a A-dos-Cunhados. António Coelho Lucas e Teresa Lucas acabaram por sair de Lisboa e foram viver para aquela casa já de jardins frondosos e terreno vasto. Os filhos saíram de casa, casaram e tiveram os seus filhos. José casou e teve dois filhos, Juvenalinho e José, que teve mais três crianças. Juvenal, o filho mais novo, casou com Rita e nasceram Pedro, Paula e João. Os dois mais novos tiveram filhos: Rita, Miguel, Rafael e Thiago.

João Lucas ainda conheceu os avós vivos, mas não se lembra de eles lhe contarem esta história. Foi o pai, Juvenal, que um dia lhe explicou porque estava no sótão aquela maqueta com a qual João brincava e que acabou por desaparecer numa das limpezas ao sótão feitas quando da morte dos avós. "Quando o meu pai me contou a história da casa, fê-lo quase como se fosse uma história normal. Ele nem valorizava muito aquele feito, mas eu depois comecei a fazer perguntas e ele contou tudo de uma forma muito completa, lembrava-se de muitas coisas."

Hoje a casa é habitada o ano inteiro por Rita e Miguel, bisnetos de António e Teresa, sobrinhos de João Lucas. Está um pouco degradada, precisa de obras e de muito trabalho de limpeza de tantos e tantos objetos que se vão escondendo nos recantos de uma casa ainda cheia de segredos. Chegados à cozinha do andar de cima que não está a uso, mas que é a original, há um grande armário embutido do teto ao chão, com três grandes portas. Numa há tachos e panelas, noutra podia haver mercearias. Abrindo a porta da direita, porém, há uma escada. É dali que se sobe para o sótão, o sítio onde João Lucas, ainda criança, encontrou a maquete, uma casinha com paredes de madeira, telhado de cartão canelado, janelas de celofane. A casa onde ele estava a brincar.

(Artigo originalmente publicado a 19 de agosto de 2018)

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