A caderneta de "cromos" da tv, revisitada pelo espectador João Gobern
João Gobern, jornalista e comentador da RTP em nome do Benfica, mergulhou nas memórias de infância passadas em frente da caixa mágica e reuniu um conjunto de programas e gente que fez história em Quando a TV Parava o País.
É pela sua primeira recordação televisiva que abre a conversa: o Mundial de Futebol de 1966. Escreve que ainda hoje sabe os resultados de cor. "A seleção portuguesa chegou como outsider e, de repente, ganhava à Hungria, ganhava ao Brasil...". "A mim talvez me tivesse acontecido de maneira mais intensa, porque na altura ia fazer seis anos e é aquela coisa de estar a absorver tudo, juntando-se a isso uma prática. Sempre que Portugal jogava havia uns jantares lá em casa. Eram festas, quase, de três em três dias", conta.
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Desafiado pela editora Matéria-Prima, João Gobern, colaborador do DN e antigo diretor do semanário Sete, fez uma combinação de relevância e gosto pessoal na seleção de programas e momentos, detetáveis logo na dedicatória. "A Carlos Cruz, Herman José, Júlio Isidro, Maria Elisa Domingues, Joaquim Letria, Mário Zambujal, Nicolau Breyner, Mário Viegas, Fialho Gouveia, Carlos Pinto Coelho, Vasco Granja e António Victorino de Almeida, uma dúzia que contribuiu decisivamente para que eu passasse tantas horas - e tão boas - com a TV".
No sofá da sala
A lista do autor, sustentada pela consulta de arquivos - os de jornais e o pessoal, "rudimentar" - e a RTP 50 Anos - História da Televisão em Portugal, de Vasco Hogan Teves, corresponde à que sumariza ao DN se pedem os nomes dos mais importantes dessa televisão-nostalgia.
O apresentador Carlos Cruz cola-se a pelo menos três momentos que pararam o país. A Visita da Cornélia, que durou escassos seis meses, Zip-Zip (com Fialho Gouveia e Raul Sonaldo) ou Um, Dois, Três. "Quando deixou de apresentar, o Um, Dois, Três perdeu metade da dinâmica", afirma João Gobern. Pela condução do programa passaram António Sala e, mais recentemente, Teresa Guilherme.
Lembra, ainda, o papel de Carlos Cruz como produtor e entrevistador, em Carlos Cruz Quarta-feira. "Não há que ter medo de dizer isto: foi o melhor entrevistador que vi na televisão". "Houve uma excelente entrevistadora chamada Maria Elisa Domingues, e o Joaquim Letria, mas talvez o mais completo de todos seja o Carlos Cruz e se for preciso hierarquizar as pessoas da TV, será sempre o primeiro", acrescenta.
Afastado da televisão desde o espoletar do caso Casa Pia, João Gobern acredita que a história ainda não acabou para Carlos Cruz. "Não gosto de usar bolas de cristal nem de fazer o trabalho do malogrado Zandinga, mas ainda não vimos tudo de Carlos Cruz. E mais. Desejo convictamente que não tenhamos visto tudo de Carlos Cruz."
No seu ranking pessoal é obrigatório falar de Herman José ("porque Herman e os Monty Python mudaram a minha vida") e de Júlio Isidro, apresentador que tinha feito a Febre de Sábado de Manhã e a Grafonola Ideal na rádio e, na televisão, apresenta O Passeio dos Alegres (1981). "Foi lá tudo o que era bom". De Carlos Paredes a Fausto Bordalo Dias, de artistas plásticos a António Variações, cujo visual o autor recorda - com um comprimido de esferovite na cabeça. A canção chamava-se Toma o Comprimido que isso Passa.
O livro passa pelo interesse do poder político pela televisão. "O primeiro político português que percebeu a importância da televisão deve ter sido o professor Marcelo Caetano", afirma, a propósito do programa de comunicação ao país que foram As Conversas em Família. "Depois do 25 de Abril nenhum político se atreveu a fazer [algo semelhante]". O PREC (período revolucionário em curso) deu outros momentos. "Uma das imagens da minha vida será sempre o capitão Duran Clemente a dizer "Posso continuar, não posso continuar..." Passou a emissão para o Porto, caiu-lhe 25 de Novembro em cima e nunca mais apareceu".
De eletrodoméstico a poder
E segue até aos dias de hoje. "O interesse desmedido da classes política e das classes de poder pela televisão é uma coisa de doidos, com ironias extraordinárias, quando vemos que o principal comentador de uma televisão privada, foi acusado durante anos de cozinhar os alinhamentos do Telejornal, enquanto ministro", diz. Marques Mendes? João Gobern acena que sim com a cabeça.
A época descrita no livro é aquela que, como descreve o autor, "a televisão tinha o poder de ser o centro das atenções ou pretexto para...". "O televisor não era apenas um eletrodoméstico", resume. "Hoje, o plasma dá para ver Netflix, DVD, Internet...". Distante já do episódio que relata nas primeiras páginas - a senhora que fazia chá para dois quando via televisão e que, "quando os filhos lhe ofereceram uma televisão para o quarto, exigiu um biombo". Esse era o tempo que, segundo João Gobern, "havia um profundo respeito por quem fazia televisão". "Hoje interessam-se pela TV porque é a celebridade fácil, o menino ou a menina que faz presenças, o caramelo que faz duas ou três novelas e é o maior."
A televisão em que "havia situações em que falhar a emissão na segunda-feira era chegar ao café na terça-feira e ser infoexcluído" termina a 6 de outubro de 1992, o dia em que a pivô Alberta Marques Fernandes inaugurou as emissões da SIC, a primeira estação privada, e palavras como audiências e zapping passaram a ser de todos os dias.
No livro, Catarina Furtado fecha a porta a esses tempos, pois "ao contrário do que muita gente pensa, estreou-se na RTP". O programa era o Top +. "É o símbolo máximo e provavelmente a melhor a mais completa das figuras do pós-privadas. Ao nível da coerência, do desempenho, das escolhas, ao nível das renúncias..."
Deixa para outros essa história de uma televisão "com excesso de reality shows, com excesso de novelas, com excesso de violência". "A sociedade é violenta, mas, caramba, também não precisamos de meninos que passam de anjos da paróquia a pluri-assassinos em três episódios".