A bomba que pôs Estaline a par da América ainda mata?
Guerrilha comunista na Grécia, bloqueio soviético de Berlim Ocidental ou Guerra da Coreia são alguns dos acontecimentos possíveis para datar o início da Guerra Fria, que alguns até fazem remontar à partilha da Europa em esferas de influência por Churchill e Estaline ainda o nazismo não tinha sido derrotado. Mas talvez 29 de agosto de 1949, faz agora 70 anos, seja a melhor opção, afinal nesse dia a União Soviética fez explodir a sua primeira bomba atómica e o monopólio da arma pelos Estados Unidos de Harry Truman desapareceu. Sim, foi o teste em Semipalatinsk, batizado de Primeiro Relâmpago, que estabeleceu o tal equilíbrio do terror, primeiro atómico e depois nuclear, que obrigou as duas superpotências a desistirem de uma Guerra Quente.
Semipalatinsk fica no Cazaquistão, nono maior país do mundo, terra onde pela primeira vez se domesticou o cavalo e hoje, com a ajuda da riqueza petrolífera, a mais bem-sucedida ex-república Soviética da Ásia Central. Ora, no final da Guerra Fria, quando a União Soviética se desagregou, tanto o Cazaquistão como a Ucrânia aceitaram desfazer-se das armas nucleares presentes nos seus territórios, herdando a Rússia todo o arsenal, ainda hoje mais de seis mil ogivas, mais ou menos o mesmo número das americanas. E os cazaques, liderados por Nursultan Nazarbaiev, tornaram-se mesmo dos mais ativos adversários da proliferação nuclear, o que se percebe porque há populações no nordeste do país, em redor de Semei e não só, que se queixam, mesmo após uma ou duas gerações, de sofrer os efeitos da radioatividade deixada por 456 testes, 116 deles atmosféricos e 340 subterrâneos. Um dos casos famosos é o pintor Karipbek Kuyukov, que nasceu sem braços, depois da exposição dos pais à radioatividade, por absoluta ignorância do que significavam os "cogumelos bonitos". Se os testes no Polígono indiretamente mataram ou ainda matam é uma terrível incógnita.
Admitamos, porém, que 74 anos depois das bombas atómicas americanas sobre Hiroxima e Nagasáqui, forçando o Japão a render-se, e 70 depois de os soviéticos se terem dotado com a arma, a bomba nuclear continua a ser cobiçada e já são nove os países a possuí-la. Reino Unido e França tornaram-se potências nucleares na década de 1950 e a China em 1964. Já Israel, embora negue a posse com escassa convicção, possui armas nucleares no mínimo desde 1986, quando o jornal britânico The Sunday Times revelou os segredos das instalações de Dimona, no deserto do Neguev, com base nas informações de Mordechai Vanunu, um cientista nuclear mais tarde capturado e levado de volta ao país pela Mossad. Índia e Paquistão, por seu lado, assumiram o estatuto nuclear em 1998, depois de um pingue-pongue de testes desafiadores uma da outra. E a Coreia do Norte fez o primeiro teste nuclear subterrâneo em 2006, confirmando ter a bomba, como reivindicava já desde o ano anterior.
Se repararmos nas datas, percebemos que quatro países se dotaram de arsenal nuclear depois da assinatura do Tratado de Não Proliferação (TNP) em 1970 e três deles até mesmo depois do fim da Guerra Fria, datemo-lo da queda do Muro a 9 de novembro de 1989. Positivo mesmo só Argentina e Brasil terem desistido dos seus programas nucleares (no tempo das ditaduras militares), assim como também o Iraque e a Líbia. O caso mais insólito é o da África do Sul, que terá obtido a bomba nuclear a dado momento mas desmantelado tudo antes de o apartheid dar lugar à democracia multirracial.
Um dos pais do programa nuclear soviético (a par de Igor Kurchatov), Andrei Sakharov, veio a tornar-se um dissidente político, ganhando o Nobel da Paz. Preocupado com o risco de uma guerra nuclear, passou por uma fase de angústia, um pouco como o cientista americano Robert Oppenheimer, a quem é atribuída a frase, inspirada nos livros clássicos do hinduísmo, "tornei-me a Morte, a destruidora de mundos". A equipa de Kurchatov e Sakharov, de soviéticos geniais, contou com a ajuda de informações recolhidas pela rede de espiões de Estaline junto do Projeto Manhattan e de início com a colaboração forçada de cientistas nazis, pois a Alemanha tentara obter essa arma para evitar a derrota na Segunda Guerra Mundial. Lavrenty Beria, homem de confiança de Estaline para obter a bomba, foi quem escolheu Semipalatinsk.
Hoje sob suspeita de ambicionar a arma nuclear, pelo menos aos olhos dos Estados Unidos, está o Irão. E por muito que os ayatollahs neguem as acusações de Donald Trump, e mantenham a confiança dos países europeus como no tempo do acordo negociado por Barack Obama, até terão algumas razões tidas como lógicas para querer ter bombas nucleares, como tentar a paridade estratégica com Israel e dissuadir golpes contra a República Islâmica.
Teriam Saddam e Kadhafi sido derrubados se tivessem chegado a alcançar o poder nuclear, é uma interrogação pertinente. Sabe-se, por exemplo, que Kim Jong-un pensa nestes dois casos e não quer correr riscos e que por muito que faça cimeiras com Trump não se vê a Coreia do Norte a abandonar a tão poderosa arma.
Se o TNP só proíbe novos membros do clube nuclear e mesmo assim é um fracasso, já o Tratado para a Proibição de Armas Nucleares (TPNW) , em fase de assinatura, parece demasiado ambicioso, mesmo que apoiado por países como o Cazaquistão, o tal do Primeiro Relâmpago. Exige que o mundo renuncie às armas nucleares, algo que, apesar do terror comprovado que causa o nuclear, não se imagina nenhuma das potências a fazer. E até alguns Estados que não têm nuclear preferem não fechar essa porta de vez, tão dissuasória é essa arma - que não se imagina usada.
Para incentivar o desarmamento nuclear, o Cazaquistão criou o Prémio Nazarbaiev para um mundo livre de armas nucleares, hoje atribuído em cerimónia em Nur Sultan ao japonês Yukiya Amano, recém-falecido diretor da Agência Internacional da Energia Atómica, e ao burquinês Lassina Zerbo, secretário executivo da Comissão para a Proibição dos Testes Nucleares. O próprio Nazarbaiev, que este ano deixou a presidência, lançou um apelo pessoal às potências nucleares para se reunirem e dialogar sobre os riscos para o mundo, recordando como ele próprio fez questão de não querer para o novo país este tipo de armas.
Sim, a bomba não voltou a ser utilizada em conflito desde agosto de 1945, mas a destruição deixada no Japão deve alertar-nos para o tremendo risco de devastação que implica as 14 mil ogivas nucleares existentes no mundo, qualquer uma delas bem mais poderosa do que a Little Boy de Hiroxima ou a Fat Man de Nagasáqui. Só a título de comparação, a chamada Tsar Bomb, que a União Soviética testou em 1961 em Nova Zembla (Ártico russo), era 3800 vezes mais poderosa do que a bomba de Hiroxima.
E se falamos de Semipalantisk, diga-se que só no deserto do Nevada os americanos fizeram entre 1951 e 1992 mais de 900 detonações (800 subterrâneas) com as consequências para as populações também a causarem viva polémica.
Vivemos, apesar de tudo o que se sabe sobre o nuclear, uma época em que perigosamente se rasgam tratados herdados, como o da interdição de mísseis de alcance intermédio INF), da tal Guerra Fria que começou há 70 anos. Renegociá-los é o mínimo que os governantes devem fazer.
(Artigo publicado na edição de 24 de agosto e atualizado depois de visita a Semipalatinsk e Nur Sultan)