A Bica pediu um "cantinho" e ganhou o título de campeã das marchas
A notícia da vitória chegou à Bica pouco passava das 6.30 horas da manhã. No Beco dos Aciprestes, o quartel-general da festa da marcha, a notícia foi confirmada por Pedro Duarte, o coordenador da marcha, que sem grandes palavras e em lágrimas, deu logo origem aos festejos. "Campeões! Campeões! Nós somos campeões!" era o cântico da ordem, misturado com desabafos de incredulidade por uma vitória que não esperavam. Muitos saltos, muitos abraços e alguns olhos postos no telemóvel para confirmar se era mesmo verdade.
Duas horas depois, este estreito beco, junto à Calçada da Bica Grande, continuava a ser pequeno para tantos marchantes, tantos bicaenses, que insistiam em celebrar a oitava vitória nas marchas, pondo fim a duas décadas de jejum - a última conquista tinha sido em 2003. No ano passado não tinham ido além do 13.º posto.
"É a vitória do sacrifício, é a vitória da raça, do amor, da dedicação, é a vitória de quem sofreu muito, sofreu calado e conseguiu transformar um tema complicado como é o da desertificação no tema de uma marcha", conta ao Pedro Duarte, que é também presidente da assembleia geral do Marítimo Lisboa Clube, que organiza a marcha.
O tema de que fala Pedro Duarte é "Um cantinho para a gente" e tem como inspiração não só a gentrificação dos bairros populares de Lisboa, como a Bica, mas também o facto de o Marítimo ter sido obrigado, em fevereiro, a entregar as chaves da sua sede, na Calçada da Bica Grande, ao novo proprietário.
"Transformámos a nossa luta numa marcha, satirizámos a situação, mas sem nunca apontar o dedo a ninguém, sem ofender ninguém, e acho que isso foi uma grande conquista", prossegue o coordenador da marcha campeã ao DN, acrescentando que estão a trabalhar com a Junta de Freguesia da Misericórdia e com a Câmara de Lisboa para encontrar uma solução para a coletividade. "Está a correr bem", assume.
Um bom exemplo desta gentrificação é Pedro Barbosa, marchante da Bica há 16 anos e que atualmente já não mora no bairro, embora garanta que "uma pessoa pode sair do bairro, mas o bairro não sai da pessoa". "Isto é uma família", sublinha. "Nós estamos a lutar para voltarmos a ter o nosso cantinho e não vamos baixar os braços, nem a cabeça. Espero que não voltem a fechar mais coletividades em Lisboa porque são elas que fazem viver os nossos bairros", prossegue o marchante.
Mas nem esta mágoa de estarem sem teto estragou o facto de a Bica ter quebrado um jejum de vitórias que já durava desde 2003. "É sempre espetacular desfilar pela Bica, é sempre um entusiasmo incrível. Ganhar foi o culminar de três meses intensos de trabalho e é sensacional. A minha voz acho que denuncia a emoção deste momento", diz Patrícia, quase afónica, que é marchante há 13 anos. "É verdade quando se diz que é um sentimento inexplicável. Já tivemos anos em que podíamos ter vencido e não vencemos, se calhar estávamos mais preparados nesses anos, mas este ano, por tudo o que fizemos, foi justo", completa Pedro Duarte.
Duplamente feliz estava Carla Madeira, presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia, pois viu as duas marchas da freguesia que lidera - Bica e Bairro Alto - ficarem nos dois lugares cimeiros do concurso deste ano. "Sou aqui autarca há dez anos e ainda não tinha vivenciado um momento destes. É uma alegria. Ainda não estou em mim, confesso que estou um bocadinho abananada com tudo isto", contou ao DN quando o relógio já passava das 9.00 horas, acrescentando que ainda não tinha ido a casa dormir. "Saí da Avenida, andei pelos arraiais a freguesia e terminei a dar apoio às nossas marchas, ao Bairro Alto e à Bica", revelou.
Falando num tom mais sério, Carla Madeira lembra que o problema da gentrificação é grave, não só a nível da habitação, mas também das coletividades, afinal é algo que não afeta apenas o Marítimo Lisboa Clube. "O Bairro Alto foi a primeira marcha que sofreu com este problema, já lá vão dez anos, quando o Lisboa Clube Rio de Janeiro teve uma ordem de despejo. Na altura, a câmara deu-lhes uma sede, onde ainda estão hoje a fazer o seu trabalho. Infelizmente, o problema alastrou-se a outras coletividades e chegou mais recentemente ao Marítimo", refere.
Por isso mesmo, a autarca dá os parabéns à marcha da Bica pela escolha do seu tema, considerando que "foi corajoso" e é um tema que "é uma preocupação que destes bairros". "Espero que ajude a chamar a atenção para um problema real que vivemos", disse, lembrando que "nos últimos meses o Marítimo conseguiu desenvolver a sua atividade com muita dificuldade, em salas de trabalho da Junta de Freguesia da Misericórdia, no meio dos arquivos, das secretárias e dos livros". "Foi aí que eles prepararam toda a sua marcha", lembra Carla Madeira.