De Ava Gardner disseram que era "o animal mais belo do mundo". A Cyd Charisse elogiaram as longas pernas de dançarina. Já Judy Garland ganhou a eternidade pela voz - e foi das três a mais trágica. Nenhuma, porém, se reduz a um atributo. Partilhando o ano de nascimento, 1922, elas simbolizam o tempo dos grandes estúdios (todas tiveram vínculo à Metro-Goldwyn-Mayer), uma era dourada de Hollywood que continua a fascinar os espetadores e o cinema dos dias de hoje, seja por nostalgia de glamour seja por verdadeira paixão cinéfila. De olhos postos na produção dos estúdios nessas décadas de 1940/50 (e não só), através da memória das referidas estrelas clássicas, a Cinemateca apresenta ao longo do mês de fevereiro um ciclo repleto de melodramas e musicais (a praia de Garland e Charisse), dramas romanescos e outros géneros (estes mais ao encontro de Gardner). Filmes que celebram três centenários, três nomes alinhados por ordem alfabética, definindo a "fatal justeza" de um programa. .Ava Gardner (1922-1990).As origens rurais de Ava Lavinia Gardner, que cresceu de pé descalço na plantação de tabaco do pai, na Carolina do Norte, são o prenúncio de uma das suas personagens mais hipnotizantes, a espanhola Maria Vargas de A Condessa Descalça (1954), de Joseph L. Mankiewicz (dia 15), cujo percurso da pobreza à riqueza se assemelha à própria vida da atriz. Nesse filme que disseca os mitos do cinema e põe Humphrey Bogart como realizador, Gardner já era uma deusa do grande ecrã, um exemplar de beleza que resistia ao rótulo de sex symbol pela dita conotação telúrica da sua feminilidade. Mas foi de facto como femme fatale que se deu a conhecer em Assassinos (1946), o noir de Robert Siodmak (dias 1 e 7) que revelava também Burt Lancaster na magnífica adaptação de um conto de Ernst Hemingway - juntamente com as adaptações de As Neves do Kilimanjaro (dias 14 e 25) e O Sol Também Brilha (dias 18 e 28), ambos de Henry King, Gardner tornou-se a atriz "hemingwayiana" por excelência..Descoberta por um caçador de talentos da MGM, que num passeio em Nova Iorque viu o retrato dela na montra do estúdio de fotografia do cunhado, em 1941 Ava já tinha contrato com o famoso produtor Louis B. Mayer. Nesses primeiros anos deram-lhe apenas papéis decorativos. Foi só quando a emprestaram à Universal Pictures (para Assassinos) que a sua carreira deu o arranque, surgindo sedutora, claro, em Mundos Opostos (1949), de Mervyn LeRoy (dias 4 e 8), fabulosamente romântica em Pandora (1951), de Albert Lewin (dias 10 e 25), ou aventureira em Mogambo (1953), de John Ford (dias 17 e 24), o segundo filme rodado em cenário africano, depois de As Neves do Kilimanjaro, e aquele que lhe valeu a única nomeação para Óscar. No presente ciclo encontramos também, entre outros, os filmes em que foi dirigida por John Huston - A Noite de Iguana (1964) e O Juiz Roy Bean (1972) - e duas obras esquecidas de George Cukor, Bhowani Junction (1956) e O Pássaro Azul (1976), este último a primeira coprodução entre os Estados Unidos e a União Soviética, uma fantasia com Elizabeth Taylor e Jane Fonda, em que a personagem de Ava Gardner representa a Luxúria....Uma mulher assim "só podia" ter tido uma vida íntima tempestuosa. Ainda jovem, deixou-se ir na cantiga do ator Mickey Rooney, com quem esteve casada um ano (1942-43), seguiu-se o músico de jazz Artie Shaw, mais um ano (1945-46), e ao terceiro casamento, com Frank Sinatra, o mediático embalo da paixão e do ciúme segurou as alianças durante seis anos (1951-57). Ficou como um dos mais célebres romances do século..DestaquedestaquePartilhando o ano de nascimento, 1922, Ava Gardner, Cyd Charisse e Judy Garland simbolizam o tempo dos grandes estúdios, uma era dourada de Hollywood que continua a fascinar os espectadores e o cinema dos dias de hoje. .Cyd Charisse (1922-2008)."Tudo em Cyd é dança, turbilhão, movimento", escreveu João Bénard da Costa. Considerada o equivalente feminino de Fred Astaire e Gene Kelly, habituais parceiros de pista, a sua passagem pelo palco da sétima arte definiu-se pela singularidade da sua técnica corporal em alguns dos melhores musicais da história do cinema. Tula Ellice Finklea nasceu no Texas, começou a ter lições de dança aos 4 anos e aos 14 entrou para os ballets russos do Coronel Wassily de Basil, casando-se aos 18 com Nico Charisse, o professor de ballet que lhe deu nome artístico. Tal como Ava Gardner, foi também no início dos anos 1940 que inaugurou os passos de dança no grande ecrã, chegando-lhe às mãos o contrato com a MGM depois de Ziegfeld Follies (1945). Nessa década ainda se destacou em A Dança Incompleta (1947), de Henry Koster, com coreografia de David Lichine, um dos defensores do seu talento, mas foi em Serenata à Chuva (1952), de Stanley Donen e Gene Kelly (dia 9), que partiu a louça toda ao lado de Kelly no número Broadway Melody Ballet. Aí, a câmara descobre-lhe primeiro a perna e percorre o seu comprimento até revelar um fato verde e um belo rosto adornado por um corte de cabelo à Louise Brooks. O que se segue? Um espetáculo de sensualidade feminina; mais ou menos da mesma ordem dos que se viram depois em Party Girl - A Rapariga daquela Noite (1958), de Nicholas Ray (dia 15)..Os maiores sucessos dos anos 1950 foram dois Minnelli - A Roda da Fortuna, ao lado de Astaire (dia 11) e Brigadoon: A Lenda dos Beijos Perdidos, de novo com Kelly (dia 14) -, Dançando nas Nuvens, de Donen e Kelly (dias 2 e 9) e Meias de Seda, de Rouben Mamoulian (dias 7 e 18), este último uma brilhante versão musical do Ninotchka (1939) de Ernst Lubitsch, sem a gargalhada de Greta Garbo, com partitura de Cole Porter e as pernas de Cyd Charisse a sucumbirem ao toque e transparência das meias de seda (há quem diga que foram feitas para ela), num bailado de subtileza erótica..Judy Garland (1922-1969) O Feiticeiro de Oz e o mítico tema Over the Rainbow serão sempre a porta de entrada para Judy Garland, a atriz e cantora que viveu com um "tremendo desejo de agradar", palavras da própria. Antes de Ava Gardner e Cyd Charisse, foi ela que a MGM contratou em 1935: a adolescente que fez um brilharete quando cantou no aniversário de Clark Gable o tema You Made Me Love You, escrito pelo compositor Roger Edens. Cantou e encantou de tal maneira que o número foi incluído no filme Maravilhas de 1938 (1937), seguindo-se Nasceu um Gentleman (1937), o primeiro título da famosa dupla com Mickey Rooney, que se estendeu por mais uma mão-cheia de comédias musicais em que ambos faziam invariavelmente de par romântico.. Filha de dois atores de teatro de Grand Rapids, Minnesota, Frances Ethel Gumm estreou-se nos palcos com 2 anos, a cantar canções de Natal, e aos 10 a mãe já lhe tinha trocado o nome de batismo por aquele que a celebrizou. Apenas uma entre várias medidas da disciplina rígida que aplicou à filha depois do primeiro casting, desde o regime à base de anfetaminas e comprimidos para dormir e para manter a linha, a um aborto forçado - Garland dizia que era ela a verdadeira Bruxa Malvada do Oeste. À custa de um sofrimento abafado tornou-se uma das mais bem pagas estrelas de Hollywood, e com Vincente Minnelli, futuro marido (o segundo), surgiu uma luz de independência materna: conheceram-se na rodagem de Não Há como a Nossa Casa (1944), onde Garland canta prodigiosamente Have Yourself a Merry Little Christmas (dias 15 e 23), mas foi depois de A Hora da Saudade (dia 17), o único não-musical que fez para a MGM, também de Minnelli, que trocou alianças com o cineasta. Nesse que é um dos seus filmes mais belos, ela protagoniza com Robert Walker uma história de amor moldada por uma corrida contra o tempo (48 horas) em Nova Iorque. No ciclo "Fatal justeza", estes e outros títulos, como O Pirata dos Meus Sonhos (1948), ainda de Minnelli, com Gene Kelly (dias 8 e 23), ou Quando Danço Contigo (1948), de Charles Walters, com Astaire (dias 16 e 18), são a prova da sua totalidade: ela cantava, dançava e representava com um misto de fragilidade e força. Algo que se testemunha a cem por cento em Assim Nasce Uma Estrela (1954), de George Cukor (dias 3 e 22), onde expôs a verdade sobre a violência do estrelato na "terra dos sonhos". Foi o seu filme da psicanálise. E nesta fase final atente-se também ao muito pouco visto A Child Is Waiting (1963), de John Cassavetes (dia 21), com Garland no papel de uma professora numa escola para crianças com problemas mentais. Não há muitos filmes em que a possamos ver assim, quase na meia-idade. Morreria cedo de mais, com 47 anos..dnot@dn.pt