Uma jovem de cabelos castanhos que gosta de livros. Antes de Bela, nenhuma princesa da Disney tinha combinado estes dois atributos. Veja-se como o cabelo negro de Branca de Neve serve de contraste à sua pele alva, os cabelos louros de Cinderela e Aurora (a Bela Adormecida) correspondem à representação clássica das princesas, e a invulgar cabeleira vermelha de Ariel condiz com a figura mitológica da sereia. Mais: livros não é com elas. Até que... na linhagem surgiu Bela, a figura mais próxima de uma rapariga comum, mas com esse "estranho" gosto pela leitura. É assim mesmo que é apresentada logo no início de A Bela e o Monstro, como alguém que se interessa por objetos "perigosos" que estimulam o pensamento..Três décadas depois da estreia do clássico da animação assinado por Gary Trousdale e Kirk Wise, recordar a cena em que Gaston, o garanhão pretendente de Bela, desdenha do fascínio dela pela literatura é recordar o essencial: aqui, o amor acontece através dos livros. Quer dizer, Bela é capaz de amar o Monstro porque tem uma mente aberta, uma sensibilidade treinada pelos romances de capa dura (é alguém que se deslumbra com a biblioteca dele), e os dois partilham a afeição pelos livros. Dito de outra maneira: ela é a única que não o julga pela lombada..Baseado no conto de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, sobre uma jovem inteligente e destemida que, para salvar o pai, se faz prisioneira de uma criatura monstruosa no seu castelo, A Bela e o Monstro representa o auge do romantismo, envolvido por elementos de conto de fadas. Segundo o feitiço da rosa, aquele que em tempos fora um príncipe deve alcançar o amor, apesar da sua aparência assustadora, antes de cair a última pétala, sob pena de permanecer na pele de um monstro para a eternidade. Algo que Bela não deixará acontecer, como bem sabemos, porque é a jovem apta para vislumbrar o interior da besta na expressão dos seus olhos azuis e no amansar da postura agressiva. Mas, até ao momento decisivo, talvez as grandes personagens do filme sejam as canções....Digamos que a banda sonora de A Bela e o Monstro é o que faz deste um dos maiores clássicos da Disney. Temas como Be Our Guest - que dá azo a uma magnífica sequência musical de louças, talheres e iguarias coreografados ao estilo de Busby Berkeley -, ou o homónimo Beauty and the Beast, ficaram na memória de gerações e gerações. A versão pop deste último, interpretada por Céline Dion e Peabo Bryson nos créditos finais (algo inédito, na altura, num filme Disney), foi mesmo lançada comercialmente como um single e converteu-se num sucesso internacional. Mérito, antes de mais, do letrista Howard Ashman e do compositor Alan Menken, a dupla que já escrevera as canções do anterior A Pequena Sereia (1989). Oito meses antes do lançamento de A Bela e o Monstro, Ashman morreu de complicações de saúde relacionadas com a sida. O filme foi-lhe dedicado..Recorde-se que também nos Óscares a música foi rainha, com duas estatuetas conquistadas, de melhor banda sonora e canção original, na cerimónia que teve, pela primeira vez, uma animação nomeada na categoria de melhor filme. Um lugar de honra que A Bela e o Monstro manteve até 2009, quando Up - Altamente conseguiu o mesmo feito. Para além disso, foi a primeira animação a vencer o Globo de Ouro de melhor filme, na categoria de comédia ou musical, e em 1994 já estava a ser transformado num espetáculo da Broadway (para que conste, também a primeira animação Disney a conseguir tal feito). Em 2017, foi a vez de Bill Condon realizar a versão live action, com Emma Watson e Dan Stevens nos principais papéis. Curiosamente, um filme cujos resultados bastante satisfatórios são indissociáveis do facto de se terem mantido os temas musicais de Menken e Ashman, a que se somaram alguns novos. Condon teve o bom senso de manter a linha romântica do original e, sobretudo, a ênfase no poder dos livros..Levar A Bela e o Monstro ao ecrã foi um desejo acalentado por Walt Disney durante muito tempo. A ideia ganhou expressão nos anos 1930 e renovou-se nos anos 1950, altura em que acabou por desistir e arquivar o projeto: achou que não tinha encontrado a abordagem certa, ainda mais depois de ter visto a soberba adaptação de Jean Cocteau, de 1946, obra-prima impossível de igualar. Por sinal, esta tornar-se-ia uma referência (plástica e poética) da animação, quando o projeto foi resgatado pelo então presidente dos estúdios, Jeffrey Katzenberg, confiante que estava com o êxito de A Pequena Sereia..As fontes de inspiração por trás de A Bela e o Monstro são diversas. À procura de um ar europeu, os diretores de arte visitaram o Vale do Loire e estudaram pintores do século XVIII, como Fragonard e Boucher. A argumentista Linda Woolverton baseou muita da caracterização de Bela na personagem de Katharine Hepburn como a mais velha das irmãs March, em Little Women (1933), de George Cukor, sendo o vestido azul que ela usa na maior parte do tempo uma citação daquele que Dorothy usa em O Feiticeiro de Oz (1939), e algumas personagens prestam homenagem a outras de Gigi (1958), o musical oscarizado de Vincente Minnelli. É o caso do candelabro Lumière, que lembra a feição de Maurice Chevalier (atente-se ainda no sotaque de Jerry Orbach), e de Gaston, que herdou o nome e a atitude de confiança da personagem de Louis Jourdan - inclusive, a cena em que Bela o rejeita é semelhante à cena em que Gigi (Leslie Caron) rejeita o seu Gaston..Para além do candelabro Lumière, o que dizer dos restantes objetos falantes do castelo do Monstro? Importa não esquecer o relógio Cogsworth, o bule de chá Mrs. Potts (com a voz perfeita de Angela Lansbury) e a amorosa chávena-criança Chip. Figurinhas animadas que, por não constarem no conto de Leprince de Beaumont, põem em evidência o génio criativo da Disney. Afinal, são eles que preenchem o vazio do castelo, que cortam a sua atmosfera gótica com um humor hospitaleiro e ajudam a criar sentimentos em relação ao Monstro..Também na componente técnica A Bela e o Monstro marcou pontos. Foi apenas a segunda animação a usar um sistema de pintura digital (CAPS), que permitiu ampliar a gama de cores e as nuances das personagens, combinando o desenho à mão com as imagens geradas por computador. Apesar das reticências iniciais, os realizadores, fiéis da animação artesanal, cederam à nova tecnologia quando perceberam o efeito alcançado na famosa sequência da valsa do par amoroso, cujo movimento apanha vários ângulos do salão de baile. Tornou-se, claro, num dos momentos mais emblemáticos do filme..Algumas das cenas desenhadas no storyboard não chegaram a ser animadas. Conta-se uma em que Gaston visita um hospício e outra em que o Monstro é visto a arrastar o cadáver de um animal que matou. Abandoná-las, por serem impactantes para o público-alvo, terá sido um gesto respeitoso para com a memória de Walt Disney. Pois a este, como escreveu Stephen Birmingham num texto biográfico, "agradava-lhe saber que os pais de família, quando viam o seu nome num filme, podiam estar seguros de que os seus filhos não encontrariam nada de forte, de mau gosto nem de inconveniente." Polémicas à parte, trinta anos depois o exemplo continua a ser seguido..dnot@dn.pt