A arte tem de ser moralmente correta?

Uma petição para retirar um quadro, uma performance sob investigação. Os casos sucedem-se e há um museu propõe-se fazer o contrário: retirar um quadro para abrir o debate. Mas as tentativas de censurar estão longe de ser novidade
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"Retiramos o quadro para abrir o debate", anunciou a Galeria de Arte de Manchester esta semana. A tela em causa, Hilas e as Ninfas (1896), pertence a John William Waterhouse e a notícia ganhou velocidade nas redes sociais. Seria mais um caso em que, perante nudez feminina subalternizada ao homem se pedia que saísse do espaço público? Outros níveis de análise se pedem, diz o museu.

O gesto de retirar o quadro da uma galeria de obras do século XIX intitulado À Procura da Beleza e faz parte de uma instalação artística que está a ser preparada para a retrospetiva dedicada à artista britânica Sonia Boyce, que assim pretende "desafiar a fantasia vitoriana". E lançar perguntas: "A galeria existe num mundo cheio de imbricadas questões de género, raça, sexualidade e classe que nos afetam a todos. Como é que as obras de arte podem falar de formas mais contemporâneas?"

O filme em que um grupo de pessoas retira o quadro estará na exposição de Sonia Boyce a partir de 23 de março. Até lá, os visitantes podem deixar a sua reação colando post-its na parede agora vazia ou na caixa de comentários do blogue da galeria. "Estou preocupada que apenas mostrem o "aceitável"" ou "Eu sei que esta jogada é para promover a discussão, mas se impusermos a censura nas artes, acharia o mundo verdadeiramente aterrorizante. O papel da arte é encorajar o debate", lê-se. Responde o gestor de redes sociais: "Concordamos, censura não é resposta. Pensem neste movimento como uma provocação, vamos ver que novo pensamento conseguimos gerar através dele".

A curadora da instituição, Clare Gannaway, veio explicar que movimentos como #MeToo e Time"s Up foram tidos em conta quando tomaram a decisão de retirar o quadro de JW Waterhouse, mas que não se trata de censura. "Não tem a ver com negar a existência de algumas obras de arte". E embora não se saiba como a história vai terminar, o quadro deverá regressar à exposição permanente, mas, "esperamos que contextualizado de maneira muito diferente. Não é só este quadro, é todo o contexto da galeria", afirma.

Sobre a necessidade de debate em torno da representação das mulheres (e minorias) e do temor de censura, fala-nos a atualidade. Em outubro, a performance La Bête, de Wagner Schwartzz, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), em que o artista, nu, permite que os visitantes interajam com ele gerou indignação quando um vídeo de uma menina a mexer nos pés e nas mãos do artista começou a circular. O Ministério Público de São Paulo abriu uma investigação. Em dezembro, uma petição, subscrita por cerca de 10 mil pessoas, pedia que o quadro Thérèse Dreaming (1938), de Balthus deixasse a exposição permanente do Museu Metropolitan, em Nova Iorque, por retratar uma rapariga numa pose sugestiva e revelando a roupa interior. Justificava a autora da petição, Mia Merrill: "Dado o clima em torno de alegações de abuso sexual que se tornam públicas todos os dias, ao mostrar este trabalho para as massas sem fornecer qualquer tipo de esclarecimento, o Met, talvez sem intenção, apoia o voyeurismo e a objetificação de crianças".

O museu recusou retirar a obra, e, como em Manchester, fala da necessidade de trocar ideias sobre o assunto. "Momentos como estes dão-nos a oportunidade para debater (...) e encorajar a contínua evolução da cultura existente através de uma discussão informada e respeito pela expressão criativa".

"É sempre necessário ter em conta a historicidade da criação artística", reflete Delfim Sardo, curador de arte contemporânea e programador da Culturgest. "Em que contexto aparece?". O que a instituições têm de fazer é informar sobre esses contextos", considera.

Como entender estas iniciativas que visam retirar a arte do olhar público? Delfim Sardo admite que "há uma deriva moralista puritana perigosa a atravessar o discurso na cultura que roça a censura". Mas, precisa, a arte não tem de obedecer a princípios de moralidade". "É preciso ter muito cuidado para não criar uma espécie de celeuma moral que extravasa para as questões da representação. "

Declaradas as conclusões, Delfim Sardo fala da premissa. "A visão artística parte do princípio de que aquele que vê é livre de decidir o que quer ver", opina. O contrário, "é infantilizar o espectador". "É um ponto de vista autoritário". "Não é por acaso que nasce nos EUA, onde as relações culturais são infantilizadas", diz.

Crítico, ensaísta e poeta, Eduardo Pitta diz que "o que se está a passar no mundo é há uma regressão de direitos sociais nítida, na Europa e nos EUA, na última década, reforçada por uma regressão dos costumes, esta onda de puritanismo".

Eduardo Pitta faz a distinção entre artista e obra, realidade e ficção: "Uma coisa é as ativistas do #MeToo defenderem uma nova cultura. Outra coisa é querer-se proibir uma retrospetiva de Roman Polanski [realizador condenado por abuso sexual de menor]. Quando muito podiam entregar um panfleto à entrada, protestar... ". E, completa, "as formas de censura são muito insidiosas, porque a gente sabe como elas começam mas não sabe como acabam."

E se, concede Delfim Sardo, há uma"hiperatenção" a partir do movimento #MeToo é preciso notar como "os problemas censórios são transversais à arte desde que existe uma produção não vinculada teologicamente. Eles existem como consequência da convulsão social e política". E não é preciso sequer recuar muito no tempo para os encontrar. Em 2015, a Fox News desvaneceu a imagem dos os seios de La Femme d" Algers, de Picasso, para noticiar que obra tinha quebrado um recorde de vendas.

E não é preciso saltar fronteiras para ver interferências. Em 2011, depois de verem o conteúdo da exposição P-Town que João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira se preparavam para mostrar no espaço Tranquilidade, a seguradora considerou que não se coadunava com os valores da empresa e pediu aos artistas para mudarem de tema. "Achámos que não havia razão, se tinham tido problemas com aquele iam ter problemas com todos, estavam a pôr em causa a nossa liberdade como artistas", afirma João Pedro Vale.

Seis anos depois, considera que "as pessoas têm pruridos com este tipo de imposições, mas o policiamento é muito maior. Já sei que se não quero ficar bloqueado no Facebook durante um mês tenho de ter cuidado com as imagens que publico e este tipo de processos estão demasiado naturalizados, já fazem de tal maneira parte que as pessoas nem se questionam". Aquilo que Delfim Sardo descreve com "mecanismos de replicação comunicacional que estimulam uma exaltação enorme". É um discurso reduzido aos 140 caracteres do Twitter ou posts do Facebook. "A formatação discursiva é outra". "É uma lógica de eficácia da publicidade mais do que do debate", entende. É uma zona fértil para as posições extremadas e "a radicalidade é sempre moralista, impõe aos outros um comportamento."

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