Os zombies andam inquietos. As últimas semanas têm sido ricas em notícias sobre The Walking Dead (entre nós disponível no canal Fox). A começar por uma variante dramática que, aqui como em outras séries televisivas que se prolongam por muitos anos, vai resolvendo o facto de um determinado intérprete querer abraçar novos projetos. Ou seja: mata-se a respetiva personagem....A especulação surgiu não numa publicação especializada no audiovisual mas na revista Forbes (que aliás mantém uma atenção regular às dinâmicas de produção do cinema e televisão nos EUA). Assim, a atriz Katelyn Nacon, intérprete de Enid, a jovem médica da comunidade de Hilltop, poderá estar de saída. Isto depois de terem circulado rumores, também até agora não confirmados, do afastamento de Khary Payton, de alguma maneira sacrificando a sua personagem Ezekiel, líder carismático do Reino e uma das figuras emblemáticas das mais recentes temporadas..Uma fuga de informação sem origem evidente (podendo não passar de uma especulação da imprensa tablóide) tem também levado a supor que as crescentes tensões entre as várias comunidades humanas de The Walking Dead vão conduzir a atual temporada n.º 9 a mais um desenlace de confrontos violentos, com a introdução de uma novidade cenográfica. A saber: um forte nevão... Uma coisa é certa: o 16.º e último episódio, agendado para 31 de março, intitula-se A Tempestade..Entretanto, o canal AMC, produtor da série, já fez saber que os chamados spin-off vão continuar a aparecer. Existe já uma dessas derivações, intitulada Fear the Walking Dead, com quatro temporadas emitidas e uma quinta agendada ainda para 2019, mas há pelo menos mais uma em preparação. Isto sem esquecer que a perda mais significativa da série nesta nona temporada - a morte da figura central Rick Grimes, que trouxe fama internacional ao ator Andrew Lincoln - está longe de ser definitiva. Grimes vai continuar a ser interpretado por Lincoln em três telefilmes da AMC, em princípio com orçamentos superiores aos dos episódios da série..Todas estas convulsões de produção poderão, em parte, ser explicadas pela performance atual da série junto dos espectadores americanos. De facto, depois dos valores mais altos obtidos da terceira à sexta temporada, The Walking Dead tem vindo a baixar as suas audiências, com vários episódios da atual temporada a ficar abaixo dos cinco milhões de espectadores - recorde-se que a abertura da quinta temporada detém o recorde absoluto de episódio de uma série mais visto na história da televisão por cabo, com 17,3 milhões de espectadores. Ainda assim, no cabo dos EUA, The Walking Dead continua a ser o programa não desportivo com maior audiência. E a produção da temporada n.º 10 está em marcha, com estreia prevista para o próximo mês de outubro..A persistência da série envolve uma assinalável resistência ao desgaste que, quase inevitavelmente, vai marcando qualquer empreendimento do género. Porque, além do mais, a premissa da primeira temporada (estreada a 31 de outubro de 2010) parecia escassa para sustentar um tão espetacular desenvolvimento. Que história se contava, afinal? Pois bem, "apenas" uma derivação das grandes sagas apocalípticas: uma enigmática epidemia global protagonizada pelo zombies que mordem os seres humanos, desse modo criando mais zombies (ou "mortos andantes", como diz o título), e os sobreviventes em fuga sem fim....Convenhamos que tão esquemática sinopse há muito deixou de ser suficiente para, pelo menos, sugerir aquilo que vai acontecendo em The Walking Dead. Através de uma pulsão trágica, não isenta de ironia, a arte dos criadores da série tem consistido em rentabilizar uma perversa ambiguidade dramática: por um lado, os zombies por lá andam e permanecem ameaçadores (os efeitos especiais têm evoluído de forma sofisticada na caracterização dos seus corpos em decomposição); por outro lado, o enfrentamento dos zombies tem sido acompanhado e, por vezes, substituído pelos confrontos mais ou menos violentos entre as várias comunidades de humanos..Podemos situar o começo dessas derivações dramáticas na temporada n.º 3, com o aparecimento do grupo liderado pelo célebre Governador (David Morrissey). Em qualquer caso, é a comunidade dos Salvadores, surgida na sexta temporada, que instala uma rutura essencial. Subitamente, todos os laços humanos estão ameaçados, sendo Negan (Jeffrey Dean Morgan) líder dessa comunidade, a mais complexa encarnação das forças malignas que Grimes e os seus enfrentaram. A arma de eleição de Negan - um taco de basebol envolvido em arame farpado - impôs-se mesmo, no interior da série, como ícone perturbante de uma violência visceralmente humana (tão humana que Negan identifica o seu taco como Lucille)..Tudo isto não pode ser desligado, como é óbvio, da inspiração de The Walking Dead na banda desenhada homónima, lançada em 2003, escrita por Robert Kirkman e desenhada por Tony Moore (mais tarde, Charlie Adlard). Dir-se-ia que há um realismo da história aos quadradinhos que apela, ou melhor integra, uma dimensão surreal que a série soube exponenciar de forma exemplar..Espantoso sintoma desse processo narrativo é, na atual temporada, o aparecimento da personagem Alfa, líder de um novo grupo (Whisperers), interpretada por Samantha Morton - lembram-se dela como um dos elementos computorizados que previa o futuro em Relatório Minoritário (2002), de Steven Spielberg?.Alfa é a encarnação do fator humano que, definitivamente (?), se transferiu para o lado dos zombies. Não porque tenha virado zombie, antes porque comanda um grupo que passou a usar máscaras de zombies para, literalmente, circular lado a lado com os "mortos andantes"... O que, afinal, reativa um princípio simbólico que a série tem sabido sustentar (sem resolver definitivamente): a morte, não como o contrário da vida, mas o seu fantasma que caminha. E vai continuar a caminhar.