Foi o documentário I Am not Your Negro (2016), de Raoul Peck, que colocou de novo a voz do autor afro-americano James Baldwin (1924-1987) no espaço mediático. Quem viu este filme - que conta uma história do racismo nos Estados Unidos através dos escritos de um romance inacabado de Baldwin, lidos por Samuel L. Jackson - sabe do que estamos a falar. Inclusivamente, Peck dá aí a conhecer a própria presença pública de Baldwin, com arquivos que o mostram na sua fascinante eloquência, revelando um homem tão inspirado na faceta da oralidade quanto na dimensão literária..É pois essa voz que está por trás do novo filme de Barry Jenkins, através de um romance de 1974 (editado recentemente em Portugal, pela Alfaguara) com muito a dizer sobre o que é isto de ser negro na sociedade americana, em qualquer época... Se Esta Rua Falasse centra-se num casal de jovens do bairro de Harlem: ele, Fonny (Stephan James), preso por um crime que não cometeu; ela, Tish (Kiki Layne), grávida dele e a fazer de tudo para o tirar da cadeia antes de o bebé nascer. Ele, único afro-americano numa fileira de suspeitos, foi apontado como o violador de uma mulher porto-riquenha; ela e a família arranjaram um igualmente jovem advogado idealista, e branco, para tentar fazer justiça num cenário em que tudo se vira contra a cor da pele do réu..Qual a resposta para a situação? Por estranho que pareça, é o amor, em toda a linha. Jenkins celebra-o em praticamente todos os momentos do filme, procurando fazer reinar a verve romântica do livro sobre a sua carga política. Mas esta última não deixa de estar bem visível: quando a ocasião narrativa o justifica, o realizador enxerta imagens documentais que sublinham a mensagem acerca da violência policial contra os negros nos Estados Unidos (uma opção de montagem pouco orgânica, que talvez seja o menos conseguido na harmonia estética do filme)..De resto, estamos perante uma adaptação cinematográfica bastante fiel, que mantém a própria voz da jovem narradora, Tish. Jenkins, à semelhança da escrita de Baldwin, faz um ziguezague temporal para trabalhar, fragmento a fragmento, a imersão do espectador nesta história de amor entre duas pessoas de pele negra - a que se soma o amor da família e mesmo a beleza da amizade. Não por acaso, uma das cenas mais fortes e comoventes de Se Esta Rua Falasse é aquela em que Fonny (num dos flashbacks) encontra um amigo recentemente libertado da cadeia e este lhe conta o que passou atrás das grades, com o medo estampado na expressão do rosto..Olhar através de um vidro.Também Regina King, no papel da mãe de Tish - nomeada para o Óscar na categoria de atriz secundária -, surge aqui como um semblante essencial à dinâmica narrativa de Jenkins. É na sua postura de genuíno desvelo maternal, estímulo de confiança e concreta ação sobre os acontecimentos, que ela faz a mais corajosa demonstração de amor do filme, indo onde for preciso para apelar à justiça. E quando falamos em "dinâmica narrativa de Jenkins", falamos do modo como o realizador de Moonlight estabelece a nossa relação com a história das personagens. A saber: é através dos rostos centrados pela câmara, a olharem diretamente para nós, que somos conduzidos à verdade que aqueles corpos representam..Aliás, a frase mais famosa do romance - "Gostava que ninguém tivesse de olhar através de um vidro para alguém que ama", referindo-se ao vidro da cabina de visitas da prisão - acaba por ser o leitmotiv da encenação de Barry Jenkins, pois é nesse sistema de "ver os rostos através de um vidro" que quase tudo funciona. É uma transparência que separa, mas também um confronto que aproxima das emoções à flor da pele. Porque, entenda-se, na linguagem do cinema deste afro-americano, o elogio dos corpos, e sobretudo da sua cor, é o âmago da abordagem..Colaborando com o mesmo diretor de fotografia do anterior Moonlight, James Laxton, o jogo intenso das cores sublinha-se aqui em função desse desejo de tornar o filme uma experiência sensorial. E a juntar-se às sensações visuais, não menos importante é a banda sonora de Nicholas Britell - outra das nomeações de Se Esta Rua Falasse para a estatueta dourada. No romance de Baldwin a música é uma referência constante, dando a cada momento do livro o gosto de uma balada. Ora no filme de Jenkins a fibra musical opera, na mesma medida, como rumor da intimidade..Finalmente, nomeado também para melhor argumento adaptado, Se Esta Rua Falasse procura acender no grande ecrã a luz e o lirismo contidos na escrita pujante de James Baldwin. E tem mérito. Só não se sabe se o suficiente para bater a concorrência, em particular a do brilhante BlacKkKlansman, de Spike Lee... Ficaremos a saber na madrugada da próxima segunda-feira.