A Jamestown, uma cidadezinha costeira do estado da Virgínia, chega-se por estradas com bermas relvadas e paisagens soberbas. O outono mancha de vermelho vivo ou amarelo luminoso as folhas dos áceres, o rio James tem pousados bandos de patos, tudo é belo e glorioso como para assinalar o que Jamestown é. E o que Jamestown é expõe-se num grande mural do seu Museu da Colonização. Ali nasceu a América como a entendemos hoje, cruzamento de povos. E, pelo mural, ficamos a saber que começou com angolanos..O mural está centrado no azul do oceano Atlântico que tem por moldura os seus três continentes. E em cada um dos continentes, a vermelho, assinalam-se os três lugares e povos que se encontraram em Jamestown: à esquerda, sobre o ponto do encontro, os índios algonquins; à direita, em cima, a Inglaterra, de onde vieram os primeiros 117 colonos brancos; e, também à direita mais abaixo, Angola, de onde vieram os primeiros 20 negros que chegaram à América que viria a ser os Estados Unidos..Os índios já lá estavam há séculos. Os brancos chegaram em 1607, e são a primeira colonização inglesa na América (só três anos mais tarde desembarcaram, bem mais a norte, em Plymouth, na Nova Inglaterra, os famosos Pilgrim Fathers que vieram no ainda mais famoso barco Mayflower). E os angolanos chegam em 1619 a Jamestown. O título do mural é Os Povos da Virgínia no Século XVII. Os três componentes iniciais do que viria a ser a América estavam, pois, já ali, nos começos de 1600, num vilarejo da costa de um território que se chamou Virgínia em homenagem à então rainha inglesa, Isabel I, a Virgem..Depois, quase tudo do grande país que se foi construindo centrou-se sobre a América branca, porque nela esteve sempre o poder. Mas, pouco a pouco, a América foi-se descobrindo também de outros e foi dando atenção aos outros. Na década de 1950, César Chávez foi preso várias vezes por ser o líder sindicalista dos camponeses mexicanos dos campos californianos (foi ele que inventou a frase "Sí, se puede", a primeira versão da agora tão conhecida "yes, we can", "sim, nós podemos"). Hoje, a rua principal de Los Angeles chama-se César Chávez....A América foi aceitando os outros e essa é sua maior força. Em 2008, quando o mestiço Barack Obama, filho de branca americana e negro queniano, foi eleito presidente da América, o governador do estado do Louisiana era Bobby Jindal, que nascera nos Estados Unidos em 1971, só dois anos depois de os pais, imigrantes, terem chegado da Índia... São cada vez mais os símbolos da América mestiça, cruzada. Outros, que não só os descendentes dos europeus, foram ocupando lugares de relevância. Depois da eleição de Obama, as atenções continuaram focadas na comunidade negra, na sua específica ligação de vítima da escravatura, de causa relevante para a Guerra Civil americana e de recente e atual luta pelos direitos cívicos - enormidade histórica - são do tamanho da contribuição cultural e económica que tem dado à grande nação americana. Sendo os precursores dessa comunidade negra, os angolanos são cada vez mais objeto da atenção americana - não só dos estudiosos das universidades, como da opinião pública. O Museu de Jamestown é dos mais visitados da América..O "Mayflower" angolano não se chamava assim e acabou por ser três barcos. Em 1619, a fragata espanhola San Juan Bautista levava 350 escravos de Luanda para Vera Cruz, no México. Os escravos tinham sido feitos prisioneiros pelos guerreiros imbangalas que aliados aos portugueses tinham atacado o reino de Ngola, em regiões banhadas pelo rio Lucala. Levados para Luanda, foram guardados nos quintalões e embarcados, em maio, na San Juan Bautista. O destino eram as minas de prata mexicanas mas nem todos chegaram lá. A fragata espanhola foi atacada, no golfo do México, por dois barcos piratas ingleses, o White Lion e o Treasurer, que lhe roubaram 60 dos mais fortes angolanos - homens, mulheres e crianças. Os piratas rumaram para a costa da Virgínia e, em agosto de 1619, em Jamestown, a colónia inglesa recentemente fundada, deixaram 20 negros, em troca de mantimentos. Os angolanos chegaram, pois, muitos meses antes dos Pilgrim Fathers, os mais famosos fundadores da América. Os angolanos, ainda na San Juan Bautista, ao atravessar o Atlântico, chamavam-se a si próprios "malungos", isto é, patrícios, aqueles que vinham da mesma região, na mesma viagem... Hoje, investigadores americanos consideram que o termo "malungo" é o primeiro que define os "afro-americanos"..O estatuto de escravo não existia, então, na Virgínia. A maioria dos brancos que tinham vindo de Inglaterra eram pobres e para pagar a sua passagem tornavam-se indentured servants, contratados, nas plantações de tabaco à volta de Jamestown. Trabalhavam de três a seis anos, antes de adquirir a liberdade. Os donos das plantações ficaram contentes com a nova mão-de-obra, negra, que podiam guardar e explorar mais tempo, antes de lhe dar a liberdade. As duas plantações que tiveram mais sucesso na Virgínia foram exatamente aquelas que ficaram com os trabalhadores angolanos..Os angolanos chegaram com nomes cristãos: Antonio, Maria, Margarida, Francisco... Os frades capuchinhos evangelizavam no reino de Ngola, ainda reinava o velho Ngola Kiluange, como continuaram a catequizar com sua filha Nzinga, chama Jinga pelos portugueses. No belo Museu da Colonização, de Jamestown, a maior das estátuas é de Nzinga, que ainda não reinava quando os seus patrícios chegaram à América (em 1619, o rei de Ngola era Mbandi, o seu irmão). No filme que é projetado no museu e que foi parcialmente realizado em Angola, uma jovem diz chamar-se "Angela", um dos nomes da relação dos primeiros angolanos desembarcados..O museu mostra, em tamanho natural, uma aldeia africana, onde uma mulher banto, à frente de uma cubata, fuma cachimbo (palavra portuguesa que vem do quimbundo e atividade ironicamente ligada à principal produção a Virgínia, o tabaco). Compara o pilão angolano com os mesmos instrumentos europeus e de índios americanos para moer o milho. A intenção manifesta do museu - que é visitado diariamente pelas escolas como lugar de estudo - é comparar as civilizações, para mostrar o cadinho que fez a América..Duas das gravuras que são mostradas em grande plano são o encontro de enviados portugueses à corte de D. Álvaro, rei do Congo, e o encontro em Luanda de Nzinga com o governador português. Expõe-se uma reprodução do rosário católico com que a rainha Nzinga foi enterrada. Sublinham-se frases de testemunhas europeias - o bispo Manuel Baptista Soares, o português Garcia Simões, o estudioso do kikongo Filippo Pigafetta - que conheceram e respeitaram a sociedade angolana contemporânea daqueles novos americanos. Sendo Jamestown um dos destinos turísticos mais procurados dos Estados Unidos, calcule-se a oficina de propaganda angolana que está naquele museu..A atenção que começa a dar-se a esta emigração forçada permite que seja seguida a rota de alguns dos seus protagonistas. Assim vão-se conhecendo alguns dos angolanos que foram também fundadores da nação americana. Veja-se ao caso daquele que na relação inicial da sua chegada a Jamestown só ficou marcado com este nome: "Antonio, o Negro", assim, sem acento. Em 1625 sabia-se que ele trabalhava, mais a mulher, a também angolana Maria, na condição de contratados (como a dos ingleses pobres que chegavam ao Novo Mundo) na plantação de tabaco do proprietário Richard Bennet..Em 1640, ambos compraram a sua liberdade. Algures na "Eastern shore of Virginia", na costa leste da Virgínia, adquiriram inicialmente 250 acres de terra, tiveram quatro filhos e chegaram a ser proprietários de 900 acres. Segundo documentos da época, Antonio e Maria tiveram, pelo menos, um escravo, John Casar, de quem se desconhece a origem, e uma criada, Mary Gersheen. Entretanto, a família adotou um nome: Johnson. Em 1660, a família Johnson emigrou para Maryland, então a mais católica das regiões americanas. O angolano Antonio, o Negro, morreu em 1660, e a sua mulher, Maria, em 1688 - e a sua família, os Johnson, desapareceu na paisagem americana. Já esquecidos do rio Cuanza....O extraordinário é que o mesmo processo - com gentes vinda do mesmo sítio e tendo o mesmo destino - aconteceria um pouco mais acima na costa americana e um pouco mais tarde, só sete anos mais. Em 1626, um grupo de onze angolanos chegou a Nova Amesterdão (cujo nome mudaria para Nova Iorque, pouco depois), no ano seguinte à cidade ter sido fundada. Quis, pois, a história que os angolanos fossem não só os primeiros africanos em território que viria a ser os Estados Unidos, em Jamestown, Virgínia, mas também os primeiros da sua cidade-símbolo, Nova Iorque..Dessa vez não se sabe em que navio vinham, mas julga-se também que eram barcos espanhóis com escravos que nas Caraíbas foram apresados por piratas. Estes trouxeram os africanos para Nova Amesterdão, cidade fundada pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Também não havendo escravatura em Nova Amesterdão, o estatuto dos recém-chegados ficou confuso e entregue, temporariamente, à Companhia Holandesa das Índias Ocidentais..Angolanos porquê? Porque há a relação completa dos nomes e a maioria destes, apesar da confusão das grafias, aponta para a mesma origem: Paulo d"Angola, Simao d'Angola, Anthony Portuguese, John Francisco, Big Manuel, Little Manuel, Anthoni Portuguis Gracia, Peter Santomee, Jan Francisco, Little Anthony e Jan de Fort Orange. No ano seguinte chegaram três mulheres angolanas, também com nomes de origem portuguesa. Trabalharem para a Companhia Holandesa como camponeses, e, 18 anos depois, os onze angolanos deram origem à primeira proclamação de emancipação da América, em 25 de fevereiro de 1644: "Nós, diretor-geral Willem Kieft, consideramos os negros [seguem-se os onze nome], que serviram a Companhia das Índias Ocidentais, com os mesmos direitos dos homens livres da Nova Holanda [como se chamava, então, o território onde estava Nova Amesterdão, que seria Nova Iorque mais tarde]." Os angolanos conseguiram a libertação que nos estados do sul só mais de dois séculos depois, ao fim da Guerra Civil americana, muitos negros tiveram..Alguns destes angolanos tornaram-se lavradores onde hoje se ergue a mais famosa cidade do mundo, Nova Iorque. Em plena Man hattan, Paulo d"Angola tinha a sua quinta, cultivando trigo, centeio e feijão onde hoje são as ruas Minetta Lane e Thompson Street. Big Manuel lavrava as suas terras que ficavam no que é hoje uma das praças mais emble máticas da cidade: o Washington Square. Greenwich Village, a zona onde ficavam essas propriedades dos angolanos, iria ser por dois séculos o bairro dos negros em Nova Iorque. Só deixou de o ser no século XIX, com a chegada em massa dos negros do sul que foram para o Harlem..Primeiros africanos de Nova Iorque, os angolanos e os seus descendentes foram também "os primeiros" em várias categorias. O gosto dos americanos pela pequena história ajuda-nos a fazer a lista de alguns desses acontecimentos. A primeira adoção legal de uma criança por um casal negro foi feita, em 1661, por Emanuel Pieterson e sua mulher Dorothy Angola, ambos cidadãos livres (tiveram de pagar pelo menino Anthony Angola 300 guinéus). Os primeiros negros que se casaram pela igreja foram Anthony van Angola, um viúvo, e Lucie d'Angola, uma viúva, em cerimónia que se realizou, a 5 de maio de 1641, em St. Nicholas, a igreja do forte de Nova Amesterdão. Depois disso, os casamentos pela igreja tornaram-se um hábito na comunidade negra. O filho de Peter Santomee, um dos onze que chegaram em 1626, foi Lucas Santomee, uma espécie de Barack Obama: ele foi o primeiro médico americano de origem africana..O Memorial recentemente inaugurado no lugar onde se descobriu o primeiro cemitério africano de Nova Iorque, na Rua Duane, vizinho à Bolsa de Wall Street, é monumento nacional e nas suas salas, em destaque natural, está a bandeira da República de Angola. Os angolanos, que não tiveram grande emigração recente para os Estados Unidos, julgavam-se afastados da sua história. Afinal, eles estiveram na origem dessa saga - e foram os primeiríssimos africanos a chegar, seja a todo o território dos Estados Unidos seja à sua maior e famosa cidade, Nova Iorque..Os olhos do mundo ficaram pregados nessa lição de misturas de povos que foi a eleição de Obama. E Angola poderia dizer que sim, também contribuiu para a construção da América. A imensa maioria de angolanos foi para lá vítima desse flagelo histórico que foi a escravatura. Mas deixaram a bola bater no peito e foram em frente... Eles também foram os pais dessa comunidade que deu Louis Armstrong, Langston Hughes, Martin Luther King, Sidney Poitier, Muhammad Ali, Barack Obama e tanto transformou a América.