É um disco? É um filme? É um exercício artístico de psicanálise? Living Room Bohemian Apocalypse, o último trabalho de David Fonseca é isso tudo e ainda poderá ser muito mais, quando finalmente chegar aos palcos, para os primeiros concertos de apresentação, em Lisboa e no Porto, a 4 e 12 de Outubro. Gravado e filmado ao longo dos últimos dois anos, este vídeo-álbum, chamemos-lhe assim, é composto por sete canções, dadas a conhecer sob a forma de episódios ao longo dos últimos três meses. A primeira canção-capítulo a ser conhecida foi Chasing The Light, ainda em abril, seguindo-se, em maio, Live It Up, I Gotta Learn How To Let You Go, Love Me Or Leave Me e In The Zone. No mês seguinte foi a vez de Not You e de Falling Out Of Love. A ideia, como o próprio revela neste entrevista, surgiu durante o confinamento, mas depressa se tornou em algo muito mais ambicioso, transformando-se numa espécie de viagem interior pelo próprio universo criativo do artista, que contou com a participação de nomes como Filomena Cautela, Joaquim Monchique, Sofia Grillo ou Raquel Henriques, para darem corpo às personagens por si imaginados..Como surgiu este projeto? Isto aconteceu devido a uma razão muito específica na minha vida, e na vida de toda a gente, que teve a ver com o facto de ter tido muito mais tempo nas minhas mãos. Houve pessoas que aproveitaram para limpar a casa, outras aprenderam a fazer pão e eu também fiz essas coisas todas. Como por norma também costumo trabalhar em casa, pensei que seria uma boa altura para fazer algo novo, mas também depressa percebi que pela primeira vez na vida ia ter muito mais tempo que o necessário para este projeto. Pensei, ok, vou fazer um disco, mas isso tem habitualmente um limite de tempo, pelo que avancei para algo mais ambicioso. Ou seja, à medida que ia fazendo o disco, ia também imaginando um universo visual para cada um dos temas. E assim foi acontecendo..Mas já era inicialmente assim tão ambicioso, como acabou por se tornar? No início não, porque tinha uma outra ideia de produção, um bocadinho mais mansa, digamos assim, mas depois como conseguimos o apoio do programa Garantir Cultura o projeto acabou por explodir, no sentido de me permitir fazer crescer essa componente visual, de modo a contar uma história do princípio ao fim..E como foi esse processo criativo? As canções estão na ordem em que foram feitas e foi através delas que fui imaginando uma história. No fundo este filme não é mais que uma metáfora do meu processo criativo, para mostrar a forma por vezes tão surreal como as canções surgem e tomam conta do meu espaço. Neste caso fiz as duas coisas ao mesmo tempo. O processo de composição foi muito parecido com o que sempre foi, mas a componente visual empurrou as canções para serem uma espécie de banda sonora. Como elas tinham de servir todo este imaginário visual e isso fez com que novas sonoridades e outros formatos musicais aparecessem. Há uma canção meio neo-soul, outra com elementos de trap, como nunca tinha usado antes, mas que serviram para ilustrar essa imagem que tinha na cabeça. No fundo pretendi que os dois universos, o sonoro e o visual, se empurrassem um ao outro para criar algo novo. E creio que o consegui. Aliás, o plano inicial era fazer apenas um EP, com três ou quatro temas, mas depois empolguei-me..Em que sentido? Nos mais diversos (risos), porque à medida que ia avançando iam-se abrindo cada vez mais caminhos. É por isso que o final do disco é tão estranho, porque as canções vão-se afunilando cada vez mais em direções diferentes. Lá está, como tinha tempo, entusiasmei-me (risos)..Pode-se dizer que é um momento de psicanálise, em especial aquele diálogo com o Joaquim Monchique, que surge como uma espécie de sósia negro do próprio David Fonseca? Sem dúvida e esse momento é como um piscar de olho a algo que tenho muito presente, porque os artistas tendem muito a cair na armadilha do autoelogio. É bom não esquecer que antes não havia redes sociais e uma pessoa podia viver a sua vida de músico, tendo os seus momentos de consagração e pronto. Mas hoje existe uma constante necessidade de autopromoção que me continua a ser bastante estranha. Sei que tenho de o fazer, todos os artistas o fazem, mas a mim isso cansa-me imenso, não só porque não me identifico assim tanto com isso, mas especialmente porque noventa por cento do meu processo criativo consiste em dar cabo de mim próprio e não tanto a enaltecer-me. Era essa pessoa que eu queria no filme. Por isso vejo a personagem do Joaquim Monchique como uma espécie de alter-ego, que aparece à minha frente para me dizer as coisas mais cruéis que sistematicamente digo a mim próprio..Com este processo criativo não corre o risco da música ficar refém da imagem e das canções do disco não sobreviverem assim de forma autónoma? Isso foi algo pensado desde o início, porque as canções têm de ter uma vida própria, isoladas até do próprio álbum, sem mais nada à sua volta. Reconheço que a maior parte dos temas não tem um formato muito radiofónico, logo a começar pela primeira canção, que tem nove minutos, para a qual fizemos uma versão com pouco mais de três, para poder passar na rádio. Ou seja, existiu essa preocupação de conseguir fazer chegar as canções às pessoas de outras formas, mas confesso que gosto muito mais delas no formato original, de filme inteiro..E como é que vão ser apresentadas ao vivo, replicando o filme em palco, em jeito de ópera-pop? Isso não, porque são dois universos completamente diferentes, muito distintos entre si do ponto de vista da apresentação ao vivo. O cinema é uma coisa que pede silêncio, concentração, escuridão, enquanto um espetáculo ao vivo é precisamente o oposto, tem de ter confusão, gritos, aplausos. Portanto, ao vivo, o que vamos tentar fazer, é uma amálgama das duas coisas. Não será um simples concerto, mas também não será um filme. Nos últimos tempos da pandemia fiz um espetáculo multimédia, que tinha um ecrã, com o qual interagia, que já não era um concerto muito tradicional. Neste caso será diferente, mas vamos continuar a usar essas plataformas, que me permitiram aprender muito sobre como misturar em palco todas essas diferentes linguagens. Em vez de um mero espetáculo ao vivo, acaba por ser mais uma experiência multimédia, mas ainda estamos a estudar como poderemos adaptar isso aos concertos de apresentação do disco, em Lisboa e no Porto, em Outubro..E aquele final, de certa forma surpreendente, que é uma espécie de regresso à realidade, qual é a explicação dele? Apesar de todas as diferentes direções em que avançámos ao longo do processo, sempre soube como iria ser o final. A canção estava feita, gravada, mas não tinha letra, porque sempre disse que só a iria escrever no final. E foi só no final, quando já tínhamos o vídeo todo montado, que percebi sobre o que era a canção e finalmente escrevi a letra..E é realmente cantada ao vivo, na praia? É, muito embora essa cena só tenha sido filmada meses depois. A ideia era mesmo essa, cantar ao vivo, para me libertar de tudo o resto. É uma canção que fala sobre perda e sobre a ideia de aceitar algo terrível que nos aconteceu. A letra é sobre uma eventual relação amorosa falhada, mas na verdade funciona como metáfora para tudo os que nos aconteceu nestes últimos dois anos. E essa libertação tinha de acontecer no meu lugar favorito, que é a praia Norte, em Peniche, onde tenho a casa dos meus avós e passei toda a minha infância. Foi uma sequência muito simbólica, filmada de uma única vez e feita de forma quase caseira, apenas com a ajuda da minha mulher e do meu pai. Foi um momento muito emocionante, que julgo ter ficado muito bem captado em vídeo..dnot@dn.pt