50 anos de Laranja Mecânica. O mundo moderno segundo Kubrik

É o papel da vida de Malcolm McDowell, o filme extremo de Stanley Kubrick, um imaginário agressivo que se colou à realidade. Depois de <em>Laranja Mecânica</em>, nunca mais a Nona de Beethoven se ouviu da mesma maneira.
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"Malcolm, sabes dançar?", perguntou Kubrick. O ator, que estava na galhofa com um dos seus companheiros de crime durante a rodagem de Laranja Mecânica, respondeu que sim, começando espontaneamente a cantar Singin" in the Rain, enquanto mostrava ao realizador as suas habilidades coreográficas com um bastão que fazia as vezes do guarda-chuva alegre de Gene Kelly... Kubrick achou perfeito. E foi assim que nasceu uma das cenas mais radicais e perturbadoras do filme, tal como Malcolm McDowell descreve no documentário O Relógio Continua a Badalar: O Regresso de Laranja Mecânica, de Paul Joyce, lançado em 2000, quando esta controversa obra-prima de Stanley Kubrick voltou a poder ser projetada nas salas de cinema britânicas, após um interregno de mais de 25 anos (foi o próprio Kubrick que retirou o filme e impediu a sua exibição no país, na sequência de ter sido apontado como motivador de episódios reais de violência, e de receber ameaças).

CitaçãocitacaoPorque é que gostamos de Alex, se ele é o mal em carne e osso, que espanca mendigos alcoólicos e é capaz de atacar uma mulher com uma escultura de um falo gigante?

A dita cena, com o (anti-)herói Alex a cantarolar um clássico e a pontapear o escritor Frank Alexander (Patrick Magee), enquanto se prepara para violar a mulher deste à sua frente, baseia-se num acontecimento trágico relatado por Anthony Burgess, o autor do livro que Kubrick adaptou. Num texto escrito depois de ver o filme, em fevereiro de 1972 (que se encontra na edição portuguesa do romance, publicado pela Alfaguara, na tradução de Vasco Gato), conta como a sua mulher foi assaltada e espancada por três soldados desertores, durante um apagão londrino em 1942. No mesmo parágrafo, diz: "O que me magoa, tal como a Kubrick, é a alegação feita por certos espetadores e leitores de Laranja Mecânica de que existe um gosto gratuito na violência (...). Não me foi de todo agradável descrever atos de violência enquanto escrevia o romance: cedi ao excesso, à caricatura, inclusivamente a um dialeto inventado com o objetivo de tornar a violência mais simbólica do que realista, e Kubrick descobriu notáveis equivalentes fílmicos aos meus próprios dispositivos literários." Termina a prosa com um lamento ainda mais profundo: "Parece que terei de atravessar a vida como fonte e origem de um grande filme, e como um homem que precisa de teimar, contra toda a resistência, que é a criatura menos violenta à face da Terra. Tal como Stanley Kubrick."

50 anos depois da estreia em Nova Iorque, a 19 de dezembro de 1971, Laranja Mecânica continua a habitar um lugar estranho na mente dos espetadores. É um filme que tanto causa fascínio, e faz corar perante esse fascínio, como pode ser completamente repelido; duas reações que estão no seu ADN. Desde aquele grande plano de Alex/McDowell, com uma expressão desafiadora a olhar para a câmara, que recua num lento travelling para revelar os seus três droogs ("amigos", em Natsat, um cruzamento de gíria inglesa e russa inventado por Burgess) sentados no Lactobar Korova, até ao final, com mesmo Alex todo engessado numa cama hospitalar, a apertar a mão ao ministro para a fotografia, Clockwork Orange pulsa uma energia visceral. Como uma fábula que agita o corpo e as ideias para chegar ao inconsciente.

Porque é que gostamos de Alex, se ele é o mal em carne e osso, que espanca mendigos alcoólicos, provoca rixas, viola e é capaz de atacar uma mulher com uma escultura de um falo gigante? Primeiro: porque a extraordinária voz off desse narrador-personagem, gozona e hipnótica, procura a cumplicidade do espetador chamando-lhe amigo. Ele é genuinamente mau, mas não é odioso. Segundo: porque a violência é levada ao ponto do irrealismo, tal como Burgess fizera no romance. Dito de outra maneira, as imagens de violência são mais uma linguagem abstrata, estilizada, e fruto da imaginação de Alex (como se vislumbra quando ele ouve uma certa Sinfonia de Beethoven), do que um apelo à resposta emocional... Pega-nos pelo colarinho da inteligência.

Muito do discurso à volta de Laranja Mecânica centrou-se neste aspeto - devorador de atenções, no espírito da época - de uma Londres do futuro dominada pela ultra violência juvenil. Mas esse não é exatamente o ponto de Kubrick, nem de Burgess, como este deixou claro pelo desânimo face às más reações. É que, na verdade, tudo vai dar ao livre-arbítrio. Quando Alex é preso e depois submetido ao tratamento Ludovico, que supostamente o curará dos impulsos violentos e sexuais, é-lhe feita uma lavagem cerebral que corresponde a um assalto à sua condição humana: passa a ser uma laranja mecânica.

E aí, Kubrick, podendo escolher entre dois finais alternativos - o da edição inglesa do livro, em que Alex acaba por ultrapassar naturalmente a fase da violência, e a americana, em que o protagonista é devolvido à sua essência malévola - optou pela última, como crente que sempre foi no mal primitivo do ser humano. Interessava-lhe aqui a crítica à instrumentalização política desse tal método Ludovico, como se dissesse aos espetadores da época (e aos de hoje), "se nos tornarmos laranjas mecânicas, como Alex, corremos o risco de ter novos Hitlers". A ordem social deve ser o crime e castigo, não a castração do livre-arbítrio.

Revisitar hoje Laranja Mecânica é redescobrir o seu vigor transbordante, que não passa só pela figura pré-punk de McDowell com o seu chapéu de coco, pestanas postiças num olho e traje "droogie". É perceber, por exemplo, que a magnificência da Nona Sinfonia de Beethoven, a predileta de Alex (aquela que quase o mata, para o salvar), é indissociável do filme. Como se transportasse sonhos bárbaros em cada nota.

Este é o mundo moderno segundo Kubrick, que se seguiu a 2001: Odisseia no Espaço (1968), com um orçamento de dois milhões de dólares - o realizador queria provar aos executivos dos estúdios que era capaz de fazer um filme com pouco dinheiro. Um filme que seria impossível nos dias de hoje (e não é preciso elaborar as razões), fruto de um título que Burgess ouviu num bar, em 1945, quando um londrino cockney de 80 anos se referiu a alguém nestes termos: "É excêntrico como uma laranja mecânica." Estava a falar de Alex, que ainda não tinha nascido.

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