"Tu, tu e tu, venham aqui falar com esta menina!" A ordem parte de António Silva, o responsável pelo Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento, e dirige-se aos três mais jovens elementos do grupo. Acabam de subir ao palco do Kennedy Center, onde apresentaram o cante alentejano a uma plateia em que os americanos pareciam tão rendidos a este género musical como os portugueses. João Batista tem 21 anos, Filipe Quaresma tem 28 e Nuno Arrais tem 31. Todos vivem em Vila Nova de São Bento (sim, já não é aldeia) e vieram agora à capital da América para a apresentação do Festival Terras sem Sombra que, neste ano, tem como país convidado os Estados Unidos. Uma estreia em terras americanas para uns, um regresso para outros..O Rancho tem elementos mais novos ainda, mas estes foram os que acompanharam o grupo até à América, até porque depois de muito viajar pelo mundo os responsáveis do grupo já perceberam que nem sempre é fácil levar um menor com eles. Dos que vieram, muitos tinham já estado em Nova Iorque, em 2015, quando atuaram na sede da ONU. Alojados num hotel perto de Dupont Circle, a zona da Embaixada de Portugal em Washington, foram recebidos nos EUA com um nevão que paralisou ainda mais uma cidade já afetada pelo encerramento (o famoso shutdown) do governo. Aqui também, a estreia com tanta neve para uns, o reencontro com uma velha amiga para os elementos que viveram por exemplo em França ou na Suíça. Da América, todos partem orgulhosos pelo trabalho feito e com uma certeza reforçada: comida a sério é no Alentejo. Pão de forma, hambúrgueres ou café aguado não convencem os cantadores..João Batista é um dos tais "filhos de". O pai e homónimo, baixo e redondo, de forte bigode grisalho, é logo apresentado pelos restantes como "o homem mais importante por aqui: o cozinheiro". Foi ele quem levou o filho para o Rancho ainda criança. "Entrei para aqui com 6 anos", conta João Batista ao DN logo depois da passagem pelo palco Millenium do Kennedy Center. "Fui a França logo nessa altura", continua, rosto ainda de menino apesar do físico imponente..Veja aqui a atuação do rancho no Kennedy Center:.Desde sempre que se lembra de ouvir o pai cantar, desde sempre que acompanhou o grupo e "há 15 anos que faço parte do Rancho", diz a rir, ainda de traje vestido. E garante que professores e patrões sempre se mostraram compreensivos quando tinha de viajar com o Rancho..A experiência de Filipe, aí, é diferente. "Podemos dizer que, quando se gosta muito de uma coisa, é muito fácil, mas não é bem assim. Na verdade, às vezes é complicado. Tem de se fazer um esforço para tentar estarmos presentes nas alturas importantes.".Ele entrou para o Rancho em 2009, mas desde novinho que ouvia cante. "Já desde miúdo que gostava muito de cantar, lembro-me às vezes de acordar cedo e os meus pais terem o rádio ligado em casa. Ouvia muitas vezes a Rádio Vidigueira, que estava sempre a dar cantares alentejanos", conta de sorriso fácil no rosto. O avô também teve um papel fundamental nesta paixão: "Muitas vezes ia com o meu avô à azeitona, ele tinha oliveiras. Íamos numa carroça de burros. E o meu avô gostava muito de cantar.".Nuno é o mais caladinho dos três. Talvez por, apesar de ser mais velho, só estar no Rancho há "quatro ou cinco meses". "O cante está em mim há muitos anos. E sempre gostei de acompanhar, de ouvir grupos em cafés e nas tabernas. É a minha paixão. E depois surgiu a oportunidade de fazer parte deste grupo. É um orgulho", garante. Antes de acrescentar que para ele "é sempre possível conciliar" o cante e o trabalho..Orgulho e muita neve.Para Filipe a primeira impressão dos Estados Unidos é gélida. "A América? É muito frio!", exclama enquanto olha para a neve que se acumula no exterior do Kennedy Center, ali bem junto ao rio Potomac que separa o distrito de Columbia, onde fica Washington, e o estado da Virgínia. Ele que diz até gostar de música americana, admite que o tempo tem sido pouco para conhecer uma terra tão grande. Até porque o primeiro dia foi passado em Manassas, a poucos quilómetros da capital, onde atuaram no Virginia Portuguese Community Center, o clube português..Fiéis à ideia de que tudo para eles acaba em brincadeira, João remata que não podia voltar ao Alentejo sem pelo menos ter visto a Casa Branca: "Era como ir a Roma e não ver o Papa." Mas o cante é coisa que levam a sério. E Nuno logo acrescenta: "Trazer o cante à América é um orgulho.".Quem não esconde o orgulho nos seus meninos é António Silva. Também ainda de traje domingueiro vestido e chapéu na cabeça depois do ensaio no Kennedy Center, o responsável do Rancho conta como a elevação do cante a Património Imaterial da UNESCO em 2014 não só trouxe "projeção e mais visibilidade a esta arte como fez ressurgir vários grupos e aparecer novos"..Quanto aos mais jovens, António Silva explica como os Cantadores de Aldeia Nova de São Bento têm vindo a introduzir algumas crianças no grupo. Mas o poderio das vozes dos mais velhos acaba por não deixar ouvi-los. "Muitos fazem grupos infantis, são o futuro, é preciso preparar a próxima geração", explica o responsável pelo grupo, antes de acrescentar: "O cante alentejano veio despertar estas crianças para a cultura que era delas desde pequenas.".Cumplicidade e cantoria.Entre os Cantadores de Aldeia Nova de São Bento a cumplicidade é inegável. A Washington vieram 25 dos 35. Seja onde for, seja a que horas for, um começa a cantar e lá vão os outros. Pode ser no aeroporto, dentro do avião, na Embaixada de Portugal nos EUA ou num restaurante mexicano. Cumplicidade e carinho, como se vê na forma como todos se unem em torno de Francisco Vinagre. Aos 92 anos, este mostra as mãos calejadas, conta como há muitos anos um martelo ali o magoou e como ainda lhe dói de vez em quando. Mas da sua boca nada de lamúrias. Está ali para cantar e não falha uma. Na América já tinha estado. Em Nova Iorque, há quatro anos. Mas foram muitos os países onde atuou. E desta vez, além da bengala, trouxe com ele no avião um saco térmico onde arrumou traje e chapéu para ficarem bem perto dele. Entre os elementos do grupo, há sempre alguém de olho nele e nos outros mais velhos. Mas o Chico Vinagre, como lhe chamam, não está cá para elevadores. Se o resto vai pelas escadas ele também. E não é homem que se negue nem a uma garrafa de vinho nem a uma ida às compras, da qual volta com uma mala de mão para a mulher - um presente que também vai com ele no avião de volta a Portugal..A tarefa de impor alguma ordem cabe ao ensaiador Pedro Mestre. Professor em Beja, a música é a sua vida. Foi ele um dos grandes responsáveis pela reintrodução da viola campaniça, praticamente desaparecida. Entre concertos, apoio a vários grupos de cante e dois filhos pequenos, desenvolve expressões musicais dedicadas à música da tradição. Aos alunos ensina cante e viola. Tudo para falar deste tipo de música e garantir a salvaguarda de uma realidade que "estava completamente morta". Este foi um dos projetos que fez parte da candidatura do cante à UNESCO..Junto dos grupos, como o Rancho dos Cantadores de Aldeia Nova de São Bento, ajuda a "aproveitarem a qualidade que têm e a estarem atuais. A terem capacidade para existir no século XXI". Para este homem com uma voz de dimensão só comparável à estatura, não há dúvidas: "Hoje o cante tem de ter a vertente cultural e etnográfica, mas tem de estar atual. E essa atualidade é lidar com tudo o que é necessário para a sua promoção: saber estar em palco, os aquecimentos vocais. Essas coisas que a teoria ensina, mas que a maioria dos cantores deste género musical não põe em prática." A razão é simples: "A maior parte destes homens não sabe diferenciar um ré de um mi." O cante é a interpretação que cada um faz de uma melodia que conhece..Com os Cantadores de Aldeia Nova de São Bento trabalha desde 2007 e garante ser um dos melhores grupos por se dedicar desde cedo a tentar estar atual. Nele estão já alguns dos antigos alunos de Pedro. Mas ele próprio admite que muitas vezes é difícil arranjar membros para os grupos. Longe dos tempos em que para se entrar num grupo era preciso ser referenciado por alguém ou ser familiar de algum deles. Vila Nova de São Bento (já não é aldeia desde 1988) é um caso à parte. "Tem muitos cantadores. O cante está muito presente ali, é algo que está nos genes.".Entre os fundadores do Rancho de Aldeia Nova de São Bento está Domingos Machado. Apesar de ter vivido na Suíça durante 26 anos, o operador de grua nunca deixou de cantar. Até formou lá o primeiro grupo alentejano "mas era acompanhado pelo acordeão". De volta a Portugal desde novembro, quando entrou na pré-reforma, voltou ao Rancho de corpo inteiro. Mesmo se antes, "quando vinha cá, ia sempre cantar com eles"..Sobre o futuro do grupo, Domingos garante que têm "bons elementos, que vão dar seguimento". E explica que o cante alentejano "é como a escola, estamos sempre a aprender. Mesmo os mais velhos"..Ele que nunca tinha vindo à América, não volta a Portugal sem os companheiros lhe cantarem os parabéns pelos 61 anos. Onde? No lobby do hotel, claro, que foi onde calhou acontecer. O cante é assim - levar o Alentejo por esse mundo fora e, muitas vezes, como agora na América, a abrir portas à política e à economia daquela região..O DN viajou a convite do Festival Terras sem Sombra