A menos de um mês do grande dia, o Diário de Notícias dava conta de que ia finalmente ser inaugurado o "Hospital Júlio de Matos para alienados". Descrevia o local como um "esplêndido conjunto de edifícios na Avenida Alferes Malheiro" - hoje Avenida do Brasil -, de "magnífica aparência", que apenas aguardava o recheio dos "34 pavilhões para assistência a alienados" para abrir os serviços..Estávamos a 11 de março e a promessa cumpriu-se a 2 de abril. Na primeira página, o DN escrevia em letras bem grandes: "Novo Manicómio de Lisboa recebe hoje os primeiros doentes". O texto que acompanhava o título começava por descrever as condições em que se encontravam os doentes psiquiátricos no velho Hospital Miguel Bombarda, na altura também conhecido por Rilhafoles.."Tudo é triste naquele casarão enorme e deslavado de Rilhafoles. Uma vida estranha alberga-se para lá dos muros altos e dos janelões gradeados dos pátios sem sol. Vida que é quase sempre intensa e agitada - uma agitação de febre e delírio - mas que muitas vezes se afunda e amodorra num marasmo, numa quietação suspeita. Os loucos - pobres homens e mulheres encerrados vivos e expulsos da vida - enchem enfermarias, amontoam-se em camaratas, apinham-se em pavilhões, invadem corredores. Há muitos corredores no Manicómio Miguel Bombarda que estão cheios de camas. Ali se abrigam doentes cujo estado reclama isolamento e cuidados especiais e que por força da precariedade das instituições convivem com outros em que ainda palpita um lampejo de razão. O problema maior daquele velho casarão era e continua a ser isto: falta de espaço. Num bairro da periferia da cidade ergueu-se há anos um estabelecimento hospitalar concebido, edificado e consagrado a solução deste magno problema nacional. O Hospital Júlio de Matos - designação que lhe foi dada em homenagem ao insigne psiquiatra e professor - há anos já que aguarda que lhe seja dado o destino para que foi criado. E hoje, finalmente, e ao cabo de tanto tempo que em seus muros se inaugura a primeira clínica psiquiátrica - o Pavilhão Salgado Araújo - já pronto a receber cerca de 500 doentes que de preferência vão ser escolhidos entre os nunca hospitalizados. Apesar disso, é natural que alguns doentes que atualmente se encontram no Manicómio Bombarda sejam transferidos para o novo estabelecimento.".Na edição do dia seguinte ao da inauguração, 3 de abril, as descrições eram mais detalhadas. "É o primeiro pavilhão a funcionar no novo manicómio que felizmente em nada se parece com o velho edifício feio e soturno de Rilhafoles. No velho manicómio tudo é desagradável. No novo tudo tem aspeto simpático. O pavilhão ontem inaugurado, cor-de-rosa, não tem sequer as grades severas e antipáticas que o assemelham a um presídio. Mas as precauções - trata-se de um pavilhão para loucos - não foram descuradas. Uma delas: os vidros das janelas são inquebráveis. Tudo o que pode tornar-se perigoso para pessoas privadas da razão se suprimiu com meticuloso cuidado e notável acerto.".No seu discurso, o diretor do hospital, professor António Flores, explicou que naquele edifício projetado pelo arquiteto Leonel Gaia, que havia falecido aproximadamente um ano antes, iriam existir vários serviços: "Consulta externa, centro de ensino e difusão de conhecimentos de psiquiatria, escola de estagiários para enfermagem, instalações para as diversas categorias de doentes, laboratórios, utilização dos métodos mais modernos de cura e tratamento dos doentes por meio de ocupação ao trabalho (oficinas).".Em 1942, porém, a ciência por si só não servia para mentes tão inquietas como as que iam parar aos hospitais psiquiátricos. Daí que o ministro do Interior, no discurso de inauguração, tenha decidido juntar as pontas e unir a terra com o céu, homens com Deus. "Por coincidência não procurada realiza-se a sua abertura na semana que a tradição cristã considera como sendo a especialmente destinada à misericórdia e não desdiz por certo desta tradição o objetivo de uma clínica destinada a afastar dos espíritos as trevas doentias que os podem invadir.".O benemérito internado à força.Criado em 1848, o Hospital Miguel Bombarda foi o primeiro hospital psiquiátrico do país. Serviu para albergar os "loucos amontoados em condições sub-humanas no Hospital Real de São José", lê-se na história oficial do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. Foi lá que o próprio Miguel Bombarda, psiquiatra, acabou assassinado por um doente mental, dois dias antes da queda da monarquia que Bombarda defendia..Morreu Miguel Bombarda, nasceu no mesmo local a ideia de construir um novo hospital psiquiátrico. O abastado empresário da época António Higino Salgado de Araújo, internado à força pelos seus sócios no Rilhafoles, pôde experimentar as condições em que viviam os doentes mentais. Decidiu, por isso, deixar em testamento os terrenos para a construção de um novo hospital, bem como a quantia de 20 contos..Na sua "estada" no Miguel Bombarda, Salgado de Araújo cruzou-se com Júlio de Matos, conceituado psiquiatra especializado em "alienismo e psiquiatria forense". O médico portuense há muito que desejava a construção de um novo hospital e o encontro com Salgado foi providencial. Em 1913 iniciaram-se as obras do chamado "Novo Manicómio de Lisboa"..Júlio de Matos morreu em 1922 e as obras, que até aí tinham avançado a bom ritmo, pararam por falta de financiamento público. Mas o testamento de Salgado de Araújo previa tudo: uma cláusula obrigava o Estado a construir o hospital antes de 1940. Estaria louco?