11 de Setembro: A realidade que parecia um filme

Da crueza do documentário à vertigem da ficção, a destruição do World Trade Center tem pontuado o cinema das duas últimas décadas: os filmes ajudam-nos a lidar com a brutalidade e o horror dos atentados.
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A herança visual do dia 11 de setembro de 2001 está inscrita nas nossas memórias individuais e coletivas. Se sabemos dizer onde estávamos quando tomámos conhecimento dos atentados contra o World Trade Center, no coração de Nova Iorque, isso significa também que nos lembramos, como símbolos indeléveis, das primeiras imagens televisivas das Torres Gémeas em chamas.

São memórias tanto mais perturbantes quanto desafiaram (e desafiam) o nosso sentido de realidade. Em boa verdade, a brutalidade e o horror do acontecimento puseram em causa a nossa própria relação com as imagens. De tal modo que muitos de nós dissemos aquela frase paradoxal que, noutro contexto, talvez até pudesse ser um jogo irónico de palavras: "Parecia um filme."

Mesmo não esquecendo que os super-heróis do cinema, antes e depois do 11 de setembro, se têm encarregado de destruir prédios, cidades e planetas como se fossem castelos de cartas, a questão de fundo não seria a "semelhança" do que estávamos a ver com este ou aquele filme. Era, isso sim, uma dúvida ansiosa, de uma só vez cinematográfica e ética: depois de vermos "aquilo", que poderíamos fazer para representar - e, nessa medida, dar a ver - o que tinha acontecido?

DestaquedestaquePara se ter uma noção da persistência do World Trade Center nas histórias contadas pelo cinema - e, mais do que isso, no imaginário cinematográfico -, vale a pena referir que as Torres Gémeas surgiram, até agora, em nada mais nada menos que 840 filmes.

Vale a pena recordar que, no começo dos anos 70, ainda durante a sua construção (a inauguração oficial ocorreu a 4 de abril de 1973), o World Trade Center funcionou como verdadeiro ícone cinematográfico. Podemos encontrar as duas torres em títulos como Os Incorruptíveis contra a Droga (1971), de William Friedkin, Mean Streets (1973), de Martin Scorsese, ou Serpico (1973), de Sidney Lumet. Neste último, em particular, as torres, lá ao fundo, pontuam várias vezes a odisseia protagonizada pelo genial Al Pacino, interpretando o polícia Frank Serpico, apostado em combater a corrupção na sua própria corporação; o "thriller" político Os Três Dias do Condor (1975), de Sydney Pollack, com Robert Redford, tinha mesmo uma cena rodada no átrio de uma das torres.

Para se ter uma noção da persistência do World Trade Center nas histórias contadas pelo cinema - e, mais do que isso, no imaginário cinematográfico -, vale a pena referir que as Torres Gémeas surgiram, até agora, em nada mais nada menos que 840 filmes. O número resulta da pesquisa de um site ("The World Trade Center in Movies") que mantém atualizado o inventário das produções que, desde 1970, com maior ou menor peso dramático, mostram as torres. Entre os títulos mais recentes figuram O Irlandês (2019), o épico de Scorsese sobre o crime organizado, Nós (2019), a parábola de terror assinada por Jordan Peele, e Valor da Vida (2020), de Sara Colangelo, centrado no trabalho do Fundo de Compensação das Vítimas do 11 de Setembro (esta semana estreado nas salas portuguesas).

Nas memórias da destruição do World Trade Center, há um documentário que emerge como testemunho único e insubstituível. Chama-se apenas 9/11 e tem assinatura de Jules e Gédéon Naudet, irmãos franceses a viver e trabalhar nos EUA desde finais dos anos 80. De facto, será um dos poucos que justifica o rótulo de reportagem sobre os atentados.

Reportagem? Como é óbvio, os Naudet não programaram o seu filme em função dos acontecimentos que acabariam por registar... Acontece que estavam em Nova Iorque a rodar um documentário sobre os bombeiros, tendo como "vedeta" uma personagem muito particular: desde finais de agosto de 2001, seguiam os passos de Tony Benetatos, aprendiz de bombeiro (na gíria, um "rookie"), filmando os mais diversos episódios da sua aprendizagem no quartel de Duane Street, Manhattan. Na manhã de 11 de setembro, a corporação recebeu uma chamada, solicitando a verificação de uma possível fuga de gás numa rua da sua área - Jules Naudet seguiu no carro encarregado da missão; Benetatos ficou no quartel, com Gédéon a acompanhar as suas tarefas.

Quando os bombeiros estavam a avaliar a situação, procurando detetar gás numa grelha metálica no alcatrão, ouviu-se um ruído pouco comum em Manhattan: era um avião a baixa altitude. Instintivamente, Jules virou a sua câmara para o céu, acabando por registar o impacto do primeiro avião na torre norte do World Trade Center - eram 08h46m.

A partir daí, aquilo que seria um documentário mais ou menos tradicional sobre os bastidores de uma profissão transfigurou-se num verdadeiro relato trágico. Os bombeiros de Duane Street foram dos primeiros a chegar ao World Trade Center, com Jules a acompanhá-los - estavam, aliás, na entrada da torre norte quando a torre sul foi atingida. As imagens obtidas, incluindo a fuga de milhares de pessoas cobertas por espessas nuvens de poeira, possuem a intensidade radical de um testemunho "ao vivo" - o filme resultante foi estreado pela CBS, a 10 de março de 2002.

Muitos outros documentários, cinematográficos e televisivos, abordaram o 11 de setembro e os seus efeitos políticos, militares e sociais. E não há dúvida que Fahrenheit 9/11, de Michael Moore, ficou como emblema de muitas (e muito controversas) reflexões e argumentações suscitadas pelos atentados - o seu impacto, convém lembrar, começou com o triunfo no Festival de Cannes de 2004, arrebatando a Palma de Ouro atribuída por um júri presidido por Quentin Tarantino.

Ao mesmo tempo, importa também não esquecer que, mesmo na ficção (apetece dizer: sobretudo na ficção), vários títulos procuraram desde muito cedo lidar com o 11 de setembro como uma data que afetou tudo e todos - das dinâmicas da geopolítica até às zonas mais recônditas dos destinos individuais. Exemplo primordial será a obra-prima The 25th Hour/A Última Hora, de Spike Lee, sobre um traficante de droga (notável composição de Edward Norton), condenado a sete anos de prisão, que aproveita o último dia de liberdade para circular por Nova Iorque, num périplo de encontros que coincide com um processo íntimo de reavaliação da sua própria história.

Spike Lee tinha rodado o essencial do filme ao longo do verão de 2001. Depois dos atentados, decidiu integrar o acontecimento na sua ficção, conseguindo filmar uma cena com um diálogo (entre Philip Seymour Hoffman e Barry Pepper) cujo fundo é o chamado "Ground Zero" - foi a primeira vez que o cinema mostrou a zona onde tinham existido as Torres Gémeas. Mais ou menos pela mesma altura, algumas imagens em que se via o World Trade Center foram retiradas de Homem-Aranha, de Sam Raimi. A 29 de junho de 2001, cerca de dois meses e meio antes dos atentados, tinha-se estreado a ficção científica A.I. - Inteligência Artificial, de Steven Spielberg: é o retrato de um menino-robot (Haley Joel Osment), num futuro em que as alterações do clima fazem com que as grandes metrópoles estejam submersas - no caso da Nova Iorque com as Torres Gémeas semicobertas pelas águas...

Como lidar com as imagens do fim do World Trade Center? A pergunta está inscrita na história do cinema desde 11" 09" 01 - 11 Perspetivas, filme coletivo estreado no Festival de Veneza de 2002 em que onze cineastas - incluindo a iraniana Samira Makhmalbaf, o americano Sean Penn, o mexicano Alejandro González Iñárritu, o israelita Amos Gitai e o japonês Shohei Imamura - assinam outros tantos episódios (cada um com 11 minutos, 9 segundos e mais um fotograma). A proposta de Iñárritu é das primeiras narrativas cinematográficas a usar imagens das torres a arder, algumas delas mostrando corpos a cair, gerando uma experiência sensorial que, na sua brevidade, possui a vibração de um verdadeiro requiem.

No campo das "reconstituições", no sentido mais corrente da palavra, dois filmes de 2006 distinguiram-se pela afirmação dos poderes de encenação do cinema: Voo 93, de Paul Greengrass, sobre o avião que os terroristas não conseguiram fazer despenhar na Casa Branca graças à ação dos respetivos passageiros, e World Trade Center, de Oliver Stone, centrado na ação de alguns elementos da Polícia do Porto de Nova Iorque tentando encontrar sobreviventes nos escombros.

Este processo de "devolução" do 11 de setembro ao realismo cinematográfico teria uma concretização muito especial em Extremamente Alto, Incrivelmente Perto (2011), de Stephen Daldry, a partir do romance de Jonathan Safran Foer. Para lá da sua delicadeza emocional, a história do rapaz (Thomas Horn) que tenta encontrar um fio condutor para compreender a herança material e simbólica do pai (Tom Hanks), morto nos atentados, o filme de Daldry sabe integrar, com dramática contenção, as imagens do World Trade Center a arder - veja-se a espantosa cena em que a mãe (Sandra Bullock) vê as torres a partir do seu local de trabalho.

Na arqueologia mitológica do World Trade Center, é forçoso citar o nome do francês Philippe Petit, funambulista que, no dia 7 de agosto de 1974, caminhou sobre um arame ligando as Torres Gémeas - durante 45 minutos! A sua proeza ilegal foi evocada no documentário Homem no Arame (2008), de James Marsh, e encenada no prodigioso The Walk/O Desafio (2015), de Robert Zemeckis, com Joseph Gordon-Levitt no papel de Petit.

O filme de Zemeckis existe, afinal, como uma celebração da criatividade humana e uma tocante memória da grandiosidade dos edifícios destruídos em 2001. Apoiado em sofisticados efeitos especiais, suscetíveis de nos fazer sentir a vertigem espetacular da travessia de Petit, The Walk (atualmente disponível na Netflix) teve um impacto moderado, mesmo nas salas IMAX de todo o mundo em que foi exibido - há nele uma verdade humana, ligada à comoção primitiva do espetáculo cinematográfico que, pelos vistos, deixou de funcionar nas salas ocupadas por super-heróis.

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