100 anos da Voz Dourada
65 mil dólares pagavam, em 1948, uma moradia no exclusivo bairro de Hancock Park em Los Angeles. O que o dinheiro ou a fama não pagavam era o respeito dos vizinhos se a pele fosse negra. Nat King Cole, já era estrela, já era rico, apresentava-se em casal e sem qualquer mancha no seu currículo, criminal ou de figura pública, e, ainda assim, logo à chegada, ouviu a provocação de um vizinho, advogado e residente no bairro. "Não queremos pessoas indesejadas por aqui". Nat King Cole não se ficou e a resposta saiu como a sua música, refinada e certeira. "Nem eu. Se vir alguém indesejado a chegar a este bairro, serei o primeiro a avisar", disse, segundo o Los Angeles Times.
Filho de Edward Coles, talhante e diácono, e de Perlina Adams, pianista na igreja local, Nathaniel Adams Cole nasceu em Montgomery, Alabama, há cem anos. Com a mudança da família para Chicago, a mãe mostrou-lhe os segredos do piano e o caminho foi rápido - aos 4 tocou a sua primeira música, aos 12 assumia o piano na igreja do pai e aos 15 abandonava o liceu para acompanhar o irmão, baixista, no circuito dos bares de Jazz e em 1937 já se mudava para Los Angeles. Aí, em trio, fez-se ouvir pela primeira vez. Num bar, um espetador bem embriagado aproximou-se do piano, com um chapéu, feito em papel, que, sem cerimónia, colocou na cabeça de Cole: "Olhe, o King Cole", a alcunha haveria de ficar, mas o verdadeiro marco chegaria depois. No final da audiência, chegou um pedido para que tocassem Sweet Loraine. Imediatamente, diz a lenda, Nat respondeu que ninguém ali cantava. Só acedeu depois do agente lhe dizer que quem pedia era conhecido por deixar generosas gorjetas. Sem o saber, tinha acabado de dar um passo determinante para deixar para trás o Jazz e o tão estimado papel de pianista, para se tornar numa das maiores vozes da história.
O trio sem nome, passou imediatamente a Trio de King Cole, mas rapidamente ficaria para trás. Nem um trio, nem o Jazz, nem o piano, tinham espaço para os palcos que Nat se preparava para conquistar. Em 1943, com Straighten Up and Fly Right, música inspirada num dos sermões do pai, chegou pela primeira vez aos tops norte-americanos. E ninguém previu o que se seguiria. De trio passou a ser acompanhado por uma orquestra e rapidamente abriu a fábrica de sucessos. Logo em 46, (Get Tour Kicks on) Route 66 e (I love you) For Sentimental Reasons, dois anos depois Nature Boy e à entrada da década de 50, Mona Lisa.
Nos Estados Unidos tornou-se campeão de vendas, estendeu a fama à América do Sul - o que o fez gravar discos de Bossa Nova e outros cantados em espanhol, língua que mal compreendia - fez-se ator de cinema e foi o primeiro negro a apresentar um programa de televisão. E se no começo da década de 50, via a sua casa penhorada por evasão fiscal, no final dizia-se que já tinha atingido a fasquia dos 50 milhões de discos vendidos e que ganhava mais de meio milhão de dólares por ano. Números únicos na época e suficientes para que tentar usar a fama noutra das suas grandes causas, os direitos civis. Depois de anos a recusar tocar para plateias segregadas, em 56 decidiu voltar a Alabama na, inocente, esperança de que poderia ajudar a dar cor ao público. Correu mal.
"Vamos apanhar o preto"
A 12 de Abril de 1956, aceitou dar dois concertos em Birmingham, o primeiro, no horário nobre, para uma plateia branca e mais tarde para negros. O segundo nunca chegou a acontecer. À terceira música do primeiro concerto, da plateia do auditório municipal ouviu-se um grito: "Vamos apanhar o preto". Nesse momento, quatro homens correram até ao palco, tendo um agarrado Nat King Cole pelos joelhos para o derrubar e agredir antes da polícia presente no local os deter. O pior soube-se depois. Os quatro homens, eram membros do Conselho dos Cidadãos Brancos, uma organização que apoiava a segregação racial, e tinham planos bem mais violentos que causar uma lesão nas costas ao cantor. No carro onde tinham chegado foram encontradas caçadeiras, marretas e soqueiras, assim como provas de que para essa noite a convocatória tinha sido alargada a mais de cem homens, tudo tendo em vista o combate ao "rock n' roll" com que os negros, diziam, se preparavam para dominar a américa. Cole, que nunca foi confundido como músico de rock n'roll, cancelou os concertos previstos para os três dias seguintes e rumou ao Norte.
No final do ano, voltaria a sofrer as consequências da cor. A 5 de Novembro de 1956, estreava-se na NBC como anfitrião do programa a que dava nome. Mas, ao contrário do seu impacto musical, esse duraria bem menos que o esperado. Nessa altura, as marcas norte-americanas estavam pouco interessadas em aparecer associadas a um negro e, apesar das audiências nunca terem sido um problema, jamais conseguiu um apoio financeiro de dimensão nacional. Mesmo com a NBC disposta a pagar toda a produção e depois de ter passado a duração dos episódios de 15 para 30 minutos, seria o próprio Cole a cancelar a sua aventura televisiva e fê-lo com estrondo. "A Madison Avenue [rua onde se concentravam as agências de publicidade nova iorquinas] tem medo do escuro", disse.
Em dueto até depois da morte.
I Don't Want to Hurt Anymore e I Don't Want to see Tomorrow seriam, em 1964, as últimas músicas que colocaria nos tops, em vida pelo menos. Fumador de três maços de tabaco diários, no final do ano problemas respiratórios obrigavam-no a cancelar concertos e, em Dezembro, as análises haveriam revelar o pior: um tumor nos pulmões. Em Fevereiro seria internado para a operação ao pulmão esquerdo no St John Hospital, em Santa Mónica. Para evitar o circo mediático, o real estado de saúde de Nat King Cole foi mantido em segredo. Durante o internamento, ficaria a saber da morte do seu pai em Chicago, mas ainda teria direito a que a Maria Cole o levasse até casa no bairro Hancock para falar com os filhos. Morreria a 15 de Fevereiro de 1965, com apenas 45 anos, deixando, além dos três irmãos, mulher, cinco filhas, Natalie, as gémeas Timolin e Casey, Carol e Nat Kelly.
E foi a mais velha, Natalie, quem o voltou a colocar no top, em 1991. Unforgettable ... With Love, gravado em jeito de dueto com as velhas gravações de Nat King Cole, venceu o Grammy para disco do ano. Unforgettable foi considerada a canção do ano e a Natalie a artista de 1992. Anos mais tarde, seria Gregory Porter a tentar a mesma receita, juntando a sua voz à de King Cole para lançar, "Nat King Cole & Me". O disco, o terceiro de Porter, não venceu prémios ou grandes aplausos da crítica, mas cumpriu um propósito - o nome de Nat King Cole voltou aos tops de vendas - 3º em Inglaterra - e a sua música voltou a ser ouvida. Chamaram-lhe a Voz Dourada. Talvez por isso resista, aos primeiros e aos próximos cem anos.