"Temos de olhar com mais atenção para os diversos Brasis que existem neste país-continente"

Hoje o Brasil celebra 199 anos de independência e já começou a contagem decrescente para as celebrações dos 200 anos, às quais Portugal se associou. Luís Faro Ramos, embaixador em Brasília e antigo presidente do Instituto Camões, fala dos fortes laços criados pela história e pela língua e acredita que há muito futuro comum a construir.
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Além de Portugal país convidado na Bienal do Livro de São Paulo em 2022, há mais momentos altos luso-brasileiros para o bicentenário da independência do Brasil, daqui a um ano, que possa revelar?
Portugal foi convidado pelo Brasil a associar-se às comemorações do bicentenário da independência do Brasil, e aceitou com muito gosto. A independência do Brasil não pode ser dissociada de Portugal. A história une os dois países para sempre. A participação na Bienal do Livro de São Paulo, em julho de 2022, será um dos pontos altos do programa do próximo ano, e haverá seguramente outros momentos muito relevantes, em Portugal e no Brasil. Teremos iniciativas brasileiras, a nível federal, estadual e municipal, e teremos iniciativas conjuntas. A festa é brasileira, e Portugal, respeitando isso, aproveitará para mostrar aos brasileiros o país que é hoje, através de manifestações sobretudo culturais mas também de outra natureza. A título de exemplo, está em curso a extensão da apresentação da exposição "Oréades" (esteve exposta na embaixada de Portugal em Brasília e foi visitada pelo Presidente da República portuguesa) dos artistas brasileiro Marcelo Moscheta e portuguesa Gabriela Albergaria no Centro Cultural do Banco do Brasil em Brasília.

A recente reinauguração do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo é um bom sinal dos fortes laços de união entre os dois países que a língua comum traz?
O nível da presença portuguesa na cerimónia - o Presidente da República e o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros - é elucidativo da importância que Portugal atribui à nossa língua comum, na qual como há tempos disse o artista brasileiro Vinicius Terra "somos poliglotas dentro da nossa própria língua". A língua é um ativo fortíssimo, talvez o mais forte, que projeta Portugal no Mundo, e o Brasil é ator fundamental nessa projeção.

Foi importante também para o futuro das relações bilaterais a visita do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, encontrando-se com o presidente Jair Bolsonaro, mas também com vários ex-presidentes, incluindo Lula da Silva?
Portugal e o Brasil têm um relacionamento singular, único, muito denso e de 360 graus. Um relacionamento muito rico, com passado, presente e futuro. Os encontros do presidente da república com o atual presidente do Brasil e com três ex-presidentes - Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer - são naturais no contexto dessa singularidade de relacionamento, que vai muito para lá das conjunturas de cada momento político.

Afirmou um dia que o Brasil é "o navio almirante" da língua portuguesa. Como sente a pujança da língua no seu dia-a-dia de embaixador em Brasília? No cinema, na literatura, no teatro?
Essa convicção fortalece-se a cada dia que passa. Cerca de 220 milhões num universo de cerca de 280 milhões, está tudo dito! Basta o exemplo das redes sociais, o português é a terceira língua mais utilizada no Facebook e na internet cresceu quase mil por cento em menos de vinte anos. As manifestações culturais brasileiras têm projeção universal. É certo que a cultura foi um dos setores que mais sofreu com a pandemia, e o Brasil não foi exceção. Mas a produção literária não parou. E a música está presente no quotidiano brasileiro, colocando permanentemente em evidência a pujança da língua portuguesa. Mesmo em tempos de pandemia, o nosso concerto do Dia de Portugal, com António Zambujo e Gal Costa, exemplifica a intensidade do diálogo luso-brasileiro. E em Portugal Caetano Veloso iniciou há dias uma série de sete concertos, todos esgotados.

Alguma palavra do português do Brasil que tenha aprendido agora e o tenha surpreendido?
Várias. A criatividade por aqui quase não tem limites. Dou quatro exemplos: ter trânsito (alguém que se relaciona muito bem com quem tem poder), turbinar (acelerar, em geral), sextar (encarar a sexta-feira como a porta para fim de semana), ser diferenciado (ter qualidade superior).

Como está a nossa comunidade no Brasil? Muito envelhecida? Há jovens a chegar?
O perfil da comunidade portuguesa no Brasil tem-se alterado de acordo com o padrão que se verifica noutros países. Hoje, mais do que emigração, fala-se em mobilidade, com portugueses mudando temporariamente de país com as suas famílias. Mais jovens e mais qualificados, sem dúvida. No caso específico do Brasil, a esta renovação da comunidade junta-se uma muito significativa procura pela nacionalidade portuguesa, que ficou recentemente facilitada pelas alterações à nossa Lei da Nacionalidade. O que é fantástico, porque entre portugueses, luso-descendentes e duplos nacionais, os laços que unem os nossos países perpetuam-se.

Que lhe dizem os brasileiros sobre Portugal? Há admiração pelo país atual? Muita gente diz-lhe que quer visitar ou até mudar-se para Portugal?
Descontando os comentários pontuais sobre a dificuldade de compreensão do português falado em Portugal [risos], só ouço referências positivas ao nosso país. A segurança pessoal, o clima e a gastronomia, a cultura de bem receber e a simpatia, ou a segurança jurídica que permite um melhor ambiente de negócios, não esquecendo a língua comum - apesar de sermos poliglotas dentro da nossa própria língua! - são pontos sempre invocados pelos brasileiros quando me falam sobre Portugal. A comunidade brasileira é neste momento a maior comunidade estrangeira no nosso país. Cada vez mais brasileiros investem em Portugal. E os turistas preparam-se para voltar em força!

A recente vandalização de uma estátua de Pedro Alvares Cabral foi um ato isolado?
Não podemos reescrever a história, temos é que tirar dela as devidas lições para que erros passados não se repitam. Portugal e Brasil têm passado, presente e futuro comum. Os símbolos e as figuras históricas existem e não é por os vandalizarmos que a história vai mudar. Como escreveu recentemente uma renomada historiadora portuguesa, ajudar a revelar, encarar e refletir sobre estas questões é mais útil que destruir, esconder ou silenciar.

Estamos agora nos 199 anos da independência brasileira. D. Pedro, como primeiro imperador, é uma figura estimada, ou os brasileiros gostam mais de D. João VI, que mudou a capital de Lisboa para o Rio e não queria voltar, já depois de a ameaça napoleónica acabar?
Vale a resposta à pergunta anterior. Dom João VI e Dom Pedro I (IV em Portugal) são duas figuras incontornáveis da história do Brasil e da história de Portugal. O que penso que é certo é que a distância temporal ajuda-nos sempre a olhar para as coisas com maior objetividade.

O Brasil é uma grande economia e com potencial para ser ainda maior. Como pode Portugal aprofundar as relações económicas?
Como o presidente da república de Portugal afirmou quando aqui esteve há cerca de um mês, o Brasil é um país portentoso. E tem um potencial enorme para crescer em todos os sentidos. Na área das relações económicas o nosso relacionamento bilateral é significativo, o Brasil é o nosso maior parceiro na América Latina. Vejo dois caminhos que merecem ser explorados. O primeiro é olharmos com mais atenção para os diversos Brasis que existem neste país-continente. Só para dar um exemplo de dois estados que já visitei, a população dos estados de Minas Gerais e da Bahia, dois dos 27 que compõem o Brasil, é mais de três vezes a população de Portugal inteiro. O Brasil não é só São Paulo e o Rio de Janeiro. Apenas um exemplo: em muitos estados o Brasil está a alocar recursos para reformas fundamentais em áreas como as das infraestruturas, saneamento, rodovias e ferrovias, abertas ao investimento estrangeiro e a conhecimentos e transferências tecnológicas que as nossas empresas detêm. O segundo caminho é aproveitar ainda melhor o formidável instrumento que as 18 Câmaras Portuguesas de Comércio espalhadas pelo país constituem. E a aprovação do Acordo de comércio entre a União Europeia e Mercosul, pela qual Portugal se bateu durante a sua Presidência do Conselho da União Europeia no semestre passado e continuará a bater-se, ajudará muito ao incremento das relações económicas.

Como reagiram os brasileiros às restrições que Portugal aplicou à entrada durante a pandemia?
Setembro trouxe muito boas notícias nessa matéria, com a retoma da possibilidade de viagens não essenciais do Brasil para Portugal e o fim da necessidade de observância de quarentena. Essas notícias foram aqui recebidas com uma enorme euforia mediática, gerando cerca de 300 (!) referências num só dia. Explicámos devidamente porque tomámos as medidas restritivas o ano passado, e que elas eram temporárias. Devo sublinhar que sempre encontrámos compreensão do lado oficial brasileiro, nem tanta do lado da população em geral, mas isso é perfeitamente natural quando estamos a falar de um muito grande fluxo turístico. Felizmente esse fluxo pode ser retomado agora, para grande benefício dos operadores e, sobretudo, das pessoas.

leonidio.ferreira@dn.pt

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