Numa conversa no Conselho Nacional de Educação, a que preside, a pedagoga Maria Emília Brederode Santos falou do primeiro encontro, ainda estudantes, dos amendoins que o José não chegou a receber na prisão, da expulsão de ambos de todas as universidades portuguesas mas também da solidariedade entre os exilados na Suíça e de essa sensação de ligeireza que se misturava com o medo do que podia acontecer se voltassem..Conheceu o seu marido, José Medeiros Ferreira, em 1962, pouco antes dos protestos estudantis desse ano. Na altura estava longe de imaginar que ele ia ser preso e mais tarde exilado político. Conheci-o nesse ano mas antes dos protestos. Conheci-o no teatro. Havia um grupo de teatro em Letras e o José entrava em cena com o sotaque muito carregado de São Miguel e dizia: " Há fogo, há fogo!" Tinha barbas à Antero de Quental. Depois houve a crise, não nos demos assim muito nessa altura. Eu tinha estado em Direito, estava mais ligada às pessoas de Direito do que às de Letras. Houve aquele momento de massas espantoso, com o reitor à mistura, com os professores a apoiarem! Depois houve um refluxo, como se dizia na altura. Foi muito mais possível haver prisões. O José foi preso logo em 1962, no final do ano. Os que ficaram no movimento foram os verdadeiros, os que acreditavam realmente, os que queriam mudar alguma coisa, mesmo sem movimento de massas..Dizia numa entrevista há uns anos que na sua vida há um antes e um depois de José. Foi um ponto de viragem mesmo tendo sido preparada toda a vida para a luta contra o regime? Sim, eu era de uma família da oposição. Embora o meu pai fosse uma pessoa moderada. Mas éramos de uma família tradicionalmente da oposição e toda a vida fui minoritária. Ainda mais sendo mulher. As coisas com o José aconteceram mais depois da luta estudantil de 1962. Mesmo quando ele foi preso ainda não nos dávamos tanto assim. Lembro-me que lhes íamos levar - a ele como aos outros estudantes - caixinhas de amendoins. Cortávamos o amendoim e num papel-bíblia escrevíamos um recado, metíamos lá dentro e voltávamos a fechar o amendoim. Era espantoso. Mas quando fui levar os meus ao José, ele tinha acabado de sair, já não os recebeu. Eram recados de solidariedade, não era uma conspiração. Portanto a nossa relação começou mais tarde. E durante uns anos foi muito intermitente: dávamo-nos, depois zangávamo-nos e voltávamos a dar-nos. O José tinha um grande sentido da História e do papel dos estudantes na História, enquanto eu levava tudo mais ligeiramente. Acho que ele me permitiu perceber mais isso. Ele tinha também um grande sentido da responsabilidade, perante os colegas e perante o futuro. É nesse sentido que eu digo que houve um antes e um depois do José - do ponto de vista do meu crescimento intelectual ou social foi importante tê-lo conhecido e termos gostado um do outro..Mais tarde o José é expulso de todas as universidades do país... Sim, isso já foi em 1964 ou 1965..Mas só em 1968, o seu marido toma a decisão de se exilar. Em 64 ou 65 houve essa expulsão. Eu também fui expulsa. Até 62 eles expulsavam só de uma universidade. Por exemplo, expulsavam de Lisboa e a pessoa ia para Coimbra. Mas perceberam que era uma grande asneira: estavam a levar estas pessoas e estas ideias para o resto do país - e vice-versa. Veio imensa gente de Coimbra para Lisboa, e do Porto. Em vez de atenuarem, estavam a espalhar. E a partir de 63, as expulsões passaram a ser de todas as escolas do país. Quanto ao que levou o José a só sair do país em 68...depois da expulsão ele foi trabalhar para uma agência de publicidade, foi nessa altura que foi candidato a deputado. Foi para os Açores e esteve lá uns tempos. O pai, que era um homem muito autoritário e não era uma pessoa politizada, recebeu-o muito bem e só lhe disse: "já que te meteste nisto, vai até ao fim". Ele sentiu-se apoiado. Para ele era muito difícil sair de cá. Enquanto para mim teria sido automático, tinha-me ido embora imediatamente. Ele tinha dois irmãos que eram militares - um no exército e outro na marinha - e conhecia muito melhor a realidade social portuguesa, percebia muito melhor como é que as pessoas reagiam. Por outro lado, ele via-se com um futuro político, queria ter intervenção política. E sabia que sair do país era uma decisão terrível. Se ele tivesse ido como refratário, teria sido muito mais ligeiro, mas ele gostava de tomar sempre posições muito claras e fortes. E por isso decidiu que só ia depois de ir para o exército. Ele sabia que ia ter de tomar essa decisão. Adiou um bocado, para ir primeiro fazer a tropa. Ele achava que se devia fazer, que era um serviço cívico. O que ele não queria era fazer uma guerra que considerava injusta..Porquê a Suíça? Em 68 tinha havido toda a movimentação estudantil extraordinária em França e começou a haver repercussões noutros países. O José começou por ir para Paris. Naquela altura, não se podia escrever uma carta ao amigo a dizer "olha, vou aí". Por isso ele chega lá sem ter avisado a Milice Ribeiro dos Santos e o Artur Castro Neves. O José tinha a morada e foi para casa deles. Mas quando chegou lá, eles não estavam e ele passou a noite nas escadas. Diz que foi a única vez na vida em que pensou suicidar-se! Depois eles lá chegaram e ele ficou uns dias, mas percebeu que havia uma certa confusão e as pessoas estavam muito divididas. E - é uma coisa que me comove lembrar - o José recebeu um telegrama do Eurico Figueiredo, que tinha sido um dos líderes do movimento estudantil, a dizer: "Vem, tens cama cá em casa". E ele resolveu ir. Foi essa a razão para ele ir para Genebra. E Genebra era uma cidade extraordinária porque era pequenina, mas no meio da Europa. Com uma universidade muito boa. Naquela fase, tinha o lado bom de ambas as coisas: a sua velha universidade, bem estruturada, com tradição, bons professores, qualidade e credibilidade, e depois veio 68 que fez questionar aquilo tudo com grande apelo à imaginação e à criatividade..A Maria Emília entretanto andava por Bristol... Pois é! No meu caso, quando ele saiu e como nenhum de nós sabia para onde ele ia, tive um convite para a universidade de Bristol. Ali tinha estado um colega meu chamado Hermes Serrão, da Madeira. Aliás, foi o passaporte dele que eu usei para o José. Hoje quando penso nisso, penso: que grande asneira na lógica clandestina! Mas pronto. Tinha lá estado a Teresa Amado, que era uma amiga nossa da faculdade. O professor que chefiava o ensino do Português pediu-lhes que indicassem uma pessoa para ser lá professora de Português, Literatura e Cultura, e eles deram o meu nome. Eu chamei-lhe um figo! Disse, vou e depois logo se vê o que acontece. Fui para lá, o José foi lá passar umas férias, eu fui passar férias a Genebra e quando acabou o contrato, no fim do ano, não renovei. Entretanto pedi uma bolsa à Gulbenkian porque Genebra era um lugar muito importante da psicologia e da educação naquela altura, tinha o Instituto de Psicologia e Ciências da Educação que depois se tornou faculdade, onde reinava o Piaget da parte da psicologia. Era muito inovadora..O José é o primeiro português a fazer o pedido de asilo político, estavam à espera que a Suíça dissesse que sim? Nenhum dos portugueses que lá estava tinha pedido. Porque diziam que a Suíça "estava feita", que dava apoio aos refugiados dos países de Leste mas que não daria aos dos países ocidentais. Mas o José achava que se a Suíça reconhecesse que ele era um refugiado político, isso era muito importante. Internacionalmente, para a condenação de Portugal como ditadura. Ele achou que com o currículo dele, com o facto de ter sido preso e haver provas disso, de ter sido candidato a deputado pela oposição, de ter sido expulso de todas as universidades, era muito difícil e escandaloso eles não lhe darem asilo. E deram. Foram impecáveis. Ele gostou da maneira como foi tudo tratado, da delicadeza. De não ter sido o Estado suíço a dar-lhe uma bolsa de estudo, mas a própria Universidade de Genebra a tomar a iniciativa. Ele gostou muito desse formalismo e dessa forma de tratamento. Perante aquilo, os amigos de Genebra também pediram asilo e acho que o obtiveram todos..A Maria Emília gosta de lembrar que não foi exilada política, foi "mulher de exilado". Como foi essa experiência? Eu podia vir a Portugal. E achámos que era mais importante essa possibilidade e esse papel - de poder trazer mensagens e levar mensagens - do que propriamente estar a implicar-me mais diretamente. Por outro lado, a situação dos casais nestes movimentos minoritários é sempre complicada. Ali não havia nepotismo nenhum, mas é um bocado desconfortável. Ou a pessoa, por exemplo numa reunião, está contra o que o marido diz e depois chega a casa e zangamo-nos, ou está a favor e também não vale a pena. Por isso achámos melhor eu concentrar-me na minha área que era a educação e psicologia e fazer esse papel de mensageira quando era preciso. Ele tinha as atividades políticas - sempre de maneira camuflada. Porque um dos inconvenientes de pedir refúgio era que a pessoa não podia ter atividade política. Mas ele ia fazendo, como a revista Polémica, que foi editada, e em que ele adotou o pseudónimo João Quental, que era muito evidente..As autoridades suíças não sabiam ou fechavam os olhos? Acho que se quisessem sabiam. E no caso dele, sabiam. Depois nos arquivos da pide ele encontrou a Polémica com os nomes verdadeiros. No caso dele era fácil porque era açoriano e só um açoriano iria buscar o Antero de Quental..De vez em quando a Maria Emília vinha a Portugal, então? Sim, vinha, trazia mensagens, levava, mas por vezes vinha só de férias. Vim cá ver o meu irmão Fernando, que estava preso em Peniche. E eu queria vir dar um certo apoio, sempre que possível..Como era o ambiente em Genebra? Sei que frequentavam a cervejaria Landolt, onde Lenine costumava ir quando estava exilado na Suíça. Havia uma mesa no Landolt que se dizia ter a assinatura de Lenine. Nunca vi a assinatura mas a mesa desapareceu. E o próprio Landolt, que era um marco fundamental de Genebra, quando lá cheguei já não era o original. Esse estava em obra e tinham-no posto cá fora no jardim, o que ainda era mais bonito. Depois disso passou a chamar-se os nomes mais estranhos: chamou-se FBI, depois foi um restaurante japonês e agora nem sei. Mas o certo é que em finais dos anos 90 houve uma cerimónia, dinamizada pelo cônsul português em Genebra, de homenagem aos refugiados portugueses e pôs-se uma placa. Essa ainda lá está..O que faziam em Genebra quando se juntavam, muita conspiração? Sim, havia uma certa vida social num grupo mais restrito. Havia lá muitos portugueses e eu não os conheci a todos. Havia várias correntes. Mas havia um grupo mais de médicos, o Eurico Figueiredo, a mulher dele, a Berta, que era cientista, o Luís Monteiro, que também tinha estado em casa do Eurico, o Carlos Almeida e a Manuela Pinto Nogueira, o António Barreto com a Line Krieger, da Sociologia. As casas onde nos encontrávamos era a do Eurico, onde o José estivera nos primeiros tempos, e a casa do Carlos Almeida e da Manuela. Em casa do Eurico encontrávamos muitos médicos, alguns vindos de Lausana. Esse era o grupo social dos portugueses. Depois havia o dos estudantes. O José estudava na universidade da Rue de Candolle, onde havia o Landolt. Nos primeiros tempos viveu no CUP - Centre Universitaire Protestant. Eu estava no antigo edifício da Sociedade das Nações, que era muito bonito. Encontrávamo-nos para almoçar no refeitório do CUP e depois íamos tomar café ao L'Or du Rhône, que era luxuoso. Comíamos no refeitório e depois gastávamos quase metade do que tínhamos gastado em comida para beber o único café bom de Genebra. Pelo menos era o que achávamos. O L'Or du Rhône tornou-se também um ponto de encontro dos portugueses. E não só dos refugiados políticos. Vinha o filho do embaixador, outros estudantes que não eram refugiados. E havia o Commerce, que era uma cervejaria ao pé dos cinemas. Íamos ao cinema e depois ao Commerce..O convívio era sobretudo entre portugueses ou davam-se com outros exilados, outras nacionalidades? O CUP fazia umas conversas semanais, animadas pelo diretor, e com estudantes de toda a parte. O CUP dava prioridade a refugiados, por isso tinha uma população muito politizada, havia um aluno do Haiti, de países árabes. Havia esse convívio mais internacional que era muito interessante. Todas as semanas eu e o José almoçávamos com o diretor e a mulher, que era americana, e com um casal de gregos que também lá estavam. E dávamo-nos muito com os brasileiros. Eles eram uma festa maravilhosa, no Carnaval. O dono do L'Or du Rhône quando o Brasil ganhou o campeonato do mundo de futebol mandou servir champanhe pelos portugueses todos que lá estavam. Os brasileiros também tinham a ditadura e aquilo lá começou a apertar muito. Lembro-me de uma das nossas colegas que era das mais animadas e depois acabou por morrer torturada. Por um lado havia uma grande ligeireza, por outro no dia seguinte morria-se na tortura. Eram contrastes impressionantes..Foi em Genebra que receberam a notícia do 25 de Abril? Exatamente..Acreditou logo que ia correr bem ou nem por isso? Podia não ser um golpe democrático de esquerda. A nossa primeira reação foi que era mas com alguns cuidados e reservas. E lembro-me que no estrangeiro a primeira reação foi que era um golpe de extrema-direita, por serem militares. Mas como o José conhecia bem as Forças Armadas e tinha feito a Tese de Aveiro em que previa que seria um golpe militar que derrubaria a ditadura, ele estava relativamente confiante. Em todo o caso, veio a Portugal logo nessa altura, para falar com os amigos, tentar perceber e saiu descansado. Uma das razões foi que a mãe escreveu-lhe dos Açores a dizer: "eles cantam as canções que tu cantavas no duche". Era o Zeca Afonso, o Adriano Correia de Oliveira. Aí ele ficou descansado: se eles cantavam Zeca Afonso e Adriano, não eram de extrema-direita de certeza! Tinham de ser boa gente, democratas, pelo menos..Durante os seis anos em Genebra iam recebendo visitas de Portugal? Recebíamos muitos portugueses. Isso era muito consolador. O Mário Mesquita foi lá, o Jaime Gama também, o Nuno Godinho de Matos, o Jorge Sampaio. E depois algumas pessoas da família. Um dos irmãos do José foi lá, mas já depois do 25 de Abril. A minha recordação desses tempos é de uma grande solidariedade entre as pessoas e isso acho que é de realçar. O Eurico recebeu o José e nós depois também recebemos várias pessoas. Era natural. Toda a gente ajudava sempre que possível. Hoje as pessoas estão muito ansiosas, também com isto da pandemia. Suportam pouco a incerteza. Nós, que vivemos estes tempos de exílio, ficámos vacinados contra a incerteza. Habituámo-nos a que tudo era incerto. Não podíamos saber o que ia acontecer amanhã..Disse numa entrevista no passado que foi Salazar quem a fez tão empenhada politicamente. Era a melhor de todas as causas? Qualquer ditador me faria ser contra ele. Mas Salazar era uma figura tão autoritária. Não suporto as pessoas autoritárias, o não ouvirem os outros. Era um país muito asfixiante. Portugal nos anos 50, princípio dos anos 60, Portugal era muito asfixiante. E ainda mais para uma mulher..A sua experiência familiar, ter estudado no liceu francês, não tornou a sua experiência menos asfixiante? Pelo contrário. No liceu francês, a parte portuguesa era dirigida por um professor que era da oposição, os professores eram pessoas de esquerda, empenhadas, que não podiam dar aulas no ensino oficial. No fundo, o liceu francês, o ter viajado para os EUA deu-me uma maneira de viver que tornava ainda mais insuportável o ambiente exterior. A insegurança, o estar sempre com medo. Estava sempre com medo que o meu pai fosse preso. A ameaça permanente. Não se poder falar alto, não poder dizer nada contra o regime. Era muito opressivo..Sente que hoje faltam aos jovens causas tão fortes? Sim. Mesmo se na altura nem todos eram contra, claro. E o caminho para protestar não era só um. Hoje há duas ou três causas muito óbvias. O ambiente, uma causa para a qual os jovens parecem estar sensíveis. Outra causa seria um certo internacionalismo. Sentimos que os problemas são cada vez mais globais e que não há respostas internacionais para eles. Depois há causas culturais que são importantes e às quais alguns miúdos são sensíveis. E depois há a causa dos direitos humanos que estão tão ameaçados. Houve um retrocesso tão grande que eu gostava que os jovens fossem sensíveis a essa problemática. É uma causa possível mas eles teriam de ser mais sensibilizados para ela..Esta experiência de Portugal com os seus exilados, da imigração, com os retornados que recebemos depois do 25 de Abril tornou-nos mais tolerante e recetivos do que outros países europeus para com os refugiados? Oxalá que sim, que nos lembremos todos desse passado. Mas tenho algum receio. Há tentativas de reação negativa aos imigrantes. Ora nós temos 5% de imigrantes, é pouquíssimo. Não faz sentido nenhum qualquer reação negativa. E sei que muitos portugueses lembram que nós também fomos para fora e fomos bem acolhidos, em França, etc. Mas oxalá essa experiência nos permita sermos mais abertos, menos preconceituosos. Que não andemos à procura de bodes expiatórios. Acho que essa é das maiores ameaças que vivemos atualmente.