D. Pedro, nascido e falecido no mesmo quarto do palácio de Queluz, mas que pelo meio cruzou o Atlântico duas vezes e foi imperador do Brasil (Pedro I) e rei de Portugal (Pedro IV), é uma figura extraordinária, basta ver o acolhimento que o seu coração teve em Brasília, levado agora para o Bicentenário da Independência. Contudo, muitos aprendizes de biógrafo não só desvalorizam os seus feitos políticos (morreu aos 35 anos como mero duque de Bragança, mas deixou um filho no trono brasileiro e uma filha no português), como o descrevem como tendo educação insuficiente. Ora, a desmentir a insuficiente cultura de D. Pedro estão no mínimo os conhecimentos de música, ao ponto de ter composto o Hino da Independência, que Ricardo Bernardes faz questão que os portugueses ouçam, até porque, sublinha o maestro brasileiro enquanto bebe comigo um cappuccino num café de Lisboa: "Para alguém que era imperador e rei, era um bom compositor"..A conversa com Ricardo - que nasceu em Curitiba em 1976 e ali se apaixonou pela música clássica, ainda adolescente, quando ia em busca de discos "garimpar nos sebos" (outra maneira de dizer procurar nos alfarrabistas e afins) - decorre no Barbica, de cuja esplanada se vê passar, a poucos metros, o Elevador da Bica. Conta que mora bem perto deste Largo de Santo Antoninho e que nestes 12 anos a viver em Portugal se foi tornando cada vez mais lisboeta. E revela com orgulho ter também cidadania portuguesa, por via de um avô que era português. Tudo então a conjugar-se para um projeto que tem há anos de dar a conhecer compositores luso-brasileiros dos séculos XVII, XVIII e XIX que irá agora concretizar-se em Lisboa em dois momentos: a 21 de outubro, na Igreja de São Roque, uma espécie de "música do Grito do Ipiranga", nas palavras de Pablo Cardoso, que foi quem me falou primeiro deste sonho do Ricardo, e que é diplomata na missão brasileira junto da CPLP; e a 7 de janeiro de 2023, provavelmente também em São Roque, um concerto mais "historiográfico". Peço a Ricardo que explique melhor.."Sempre gostei da ideia de viagens imaginárias, para que as pessoas façam viagens estéticas e musicais, e imaginei o 7 de setembro de 1822, data do Grito do Ipiranga, e o que musicalmente teria acontecido. Sabe-se que no final desse dia houve um Te Deum na Sé de São Paulo, pelo André da Silva Gomes, mas dos registos não consta nenhum Te Deum dele com orquestra, então vamos fazer uma obra possível que podia ter sido tocada nessa ocasião. Imagino que o grito da "Independência ou morte", dado junto ao riacho do Ipiranga, também foi sabido pouco depois em Vila Rica, atual Ouro Preto, e que o compositor de lá teria tido de improvisar para a celebração. Isto será em outubro e com transmissão via streaming pelo site da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa e RTP Palco. Depois, no concerto de janeiro, o tema já é a música da Corte. É um projeto aprovado pela DGARTES (e a missão do Brasil junto da CPLP apoia, tal como o anterior, que também é patrocinado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa) a que chamei "Um reino e um império", que é sobre o contexto musical em torno de D. Pedro I, com a estreia moderna de uma obra de Sigismund Neukomm, escrita em 1818 ainda com D. João VI no Rio de Janeiro, e que é deslumbrante. Era um austríaco que chegou ao Brasil antes de Leopoldina, mas que vai ser muito próximo da imperatriz. Vamos ter também obras de Marcos Portugal, José Maurício Nunes Garcia e do próprio D. Pedro, que na tradição dos Bragança, gostava muito de música"..Sobre D. Pedro, que em 1831, dez anos depois do regresso do pai, também decidiu voltar a esta Lisboa que a família real portuguesa trocara pelo Rio para não ser presa pelos invasores franceses como aconteceria ao espanhol Fernando VII, Ricardo diz que como músico tem, além dessa abertura sinfónica que dá pelo nome de Hino da Independência, muitas composições de música sacra, até uma grande Missa, de que uma parte das partituras estão em Lisboa, mas as cópias das partes solistas vocais estão nos Açores. "D. Pedro era um compositor diletante, que tinha a música como uma das suas muitas atividades. Era um capricho culto e que mostra a diversidade da personalidade dele, muito interessante. A música tem valor pelo contexto, por ser dele. Por isso costumo dizer, sem ironias, que para imperador, era um bom compositor", esclarece o maestro..De grande qualidade, acrescenta Ricardo, eram figuras como Marcos Portugal, famoso como compositor de ópera, que depois de estudar na Itália "acabou por se juntar à Corte de D. João VI no Rio e leal a D. Pedro morreu brasileiro por escolha", ou José Maurício Nunes Garcia, "nascido no Brasil, e que nunca veio a Portugal, que atua na corte e é tão apreciado pelo rei português, que este trouxe obras dele, que estão no arquivo do palácio de Vila Viçosa". Outros casos interessantes são o lisboeta André da Silva Gomes, "militar de carreira ao serviço de Portugal e depois político no Brasil independente, que chegou a São Paulo com 19 anos e lá morreu com 92", e "João de Deus Castro Lobo, brasileiro mulato, que entrou na igreja para ser padre em Minas Gerais e se tornou o grande compositor da região. Vamos fazer um Te Deum dele"..Curiosamente, a embaixada brasileira anunciou, já depois desta conversa, que a Orquestra Filarmónica de Minas Gerais daria a 7 de setembro, em Lisboa, no jardim junto da Torre de Belém, um grande concerto de celebração dos 200 anos da Independência, aberto a todos, com transmissão pela RTP2, fruto de uma parceria com a Câmara de Lisboa/EGEAC. Também haverá concertos nos dias 6 (Casa da Música, Porto), 8 (CCB, Lisboa) e 9 (Convento de São Francisco, Coimbra)..Durante a passagem da orquestra mineira por Portugal será lançado o CD que esta gravou com obras de D. Pedro. Notícias fresquíssimas que só poderão agradar a Ricardo, duplo doutorado em música, que me confessou ter ficado preocupado por durante muito tempo não ver nada programado nas grandes salas portuguesas sobre o bicentenário..Expliquemos melhor o duplo doutoramento do maestro, filho de uma licenciada em História da Arte e de um cirurgião que teve de se impor à família, "mas não muito", para não ir estudar Direito e seguir antes a sua paixão pela música clássica, que, em Curitiba, era especialmente acarinhada por uma população com muitas famílias de origem alemã a quem nomes como Bach diziam muito. Hoje à frente do Americantiga Ensemble com vários discos gravados, Ricardo sempre foi um lutador e isso, associado ao talento, começou a trazer resultados académicos e bolsas. Conta que um dia conheceu o musicólogo português Rui Vieira Nery, doutorado pela Universidade de Austin, no Texas, e que isso o incentivou a aceitar o desafio de ir fazer o doutoramento nos Estados Unidos, sob a orientação de Andrew Dell"Antonio..Os anos em Austin não o levaram, porém, a entusiasmar-se com a sociedade norte-americana e Portugal, sobretudo Lisboa, tinham um charme que o maestro brasileiro já experimentara em passagens pelo país. Também com alguma intervenção de Vieira Nery surgiu a hipótese de juntar ao doutoramento em Musicologia por Austin (tese sobre ópera em língua portuguesa nos finais do século XVIII) o doutoramento em Ciências Musicais pela Universidade Nova de Lisboa. E assim aconteceu. O orientador foi David Cranmer e a tese versou a música para aclamação de D. Maria I. E a capital portuguesa impôs-se como casa ("Lisboa era mesmo uma escolha há muito para mim") , mesmo que seja a instituição de Vila Real, a Fundação Casa de Mateus, que, pot via da diretora Teresa Mateus, lhe oferece o primeiro reconhecimento. "Conhecemo-nos, contei como era fascinado com a ligação do Morgado à música e com os cursos que a fundação fazia, e começámos a trabalhar juntos. Depois surgiu o convite para ser o diretor artístico dos Encontros Internacionais de Música", diz Ricardo, que me explica como o 4.º morgado de Mateus, "um melómano", se destacou como "o refundador de São Paulo" no tempo do marquês de Pombal, tendo sido em 1765 o primeiro capitão-general da recriada Capitania de São Paulo. "Dois anos depois, o Morgado inaugurava a casa da ópera de São Paulo, acrescenta Ricardo, entusiasmado com a figura histórica, mais uma a ligar Portugal e Brasil, como D. Pedro, seja qual for o número romano que se ponha a seguir ao nome, ou o próprio maestro, tão lutador que à carreira ligada à música junta também o negócio imobiliário e a exportação de vinho..E uma recomendação final de Ricardo, sobre D. Pedro. "Há um filme fantástico, A viagem de Pedro, da cineasta brasileira Laís Bodanzky, que mostra um lado muito humano das inseguranças dele, porque conta a viagem de regresso a Portugal, quando ele deixa o Brasil e um filho menor para trás para defender o trono da filha também menor. Mostra as crises existenciais dele. Eu acho-o fascinante, até o facto de ter nascido e morrido na mesma casa. Ele precisa de um revival e é importante chamar a atenção para esta sua versão de músico, não era só um miúdo mulherengo, como por vezes o catalogam. Longe disso".