Clássico do terror reinventado como parábola sobre a culpa
O cineasta italiano Luca Guadagnino surge agora a dirigir uma sequela de Suspiria (1977), a realização de Dario Argento há muito consagrada como referência de culto de um certo cinema europeu que, sobretudo em Itália, explorou o género de terror através de derivações de extravagante delírio formal. É caso para perguntar que relação Guadagnino pode estabelecer com um universo tão diferente do romantismo amargo e doce que pontuava o seu belíssimo Chama-me pelo Teu Nome (2017).
Pois bem, a resposta envolve uma serena demarcação criativa. Guadagnino não é, de modo algum, um copista, nem está preocupado em organizar o seu filme como uma "homenagem" simplista ao trabalho de Argento. Acima de tudo, o novo Suspiria assume o risco de aproximar o mais delirante artifício visual do concreto das memórias históricas.
As peripécias desta história de muitos assombramentos arrancam de modo algo semelhante ao original. A saber: há uma jovem americana, interpretada por Dakota Johnson (aqui liberta da vulgaridade de As 50 Sombras de Grey) que vai frequentar uma escola de dança na Alemanha - com a intérprete principal do filme de Argento, Jessica Harper, a reaparecer num pequeno papel. O confronto com a figura altiva da professora, composta por uma sempre hiper-rigorosa Tilda Swinton, vai instalando a sensação perturbante de que algo de malévolo circula por aquela instituição...
Enfim, nenhuma sinopse pode dar conta daquilo que é essencial. Ao abrir o seu filme aos sinais de uma Alemanha a atravessar as convulsões da década de 70 - com o terrorismo a eclodir no quotidiano e as perturbantes memórias da Segunda Guerra Mundial -, Guadagnino cria um universo em que tudo se cruza e contamina, da vibração dos corpos à presença invisível do Mal. No limite, estamos perante uma parábola sobre um país ferido por um sentimento generalizado de culpa, porventura incapaz de pensar a sua própria redenção.
Sintomaticamente, o próprio Guadagnino esclareceu que apostou numa paleta cromática bem diferente da que Argento aplicou. Enquanto o filme de 1977 se distingue pela exuberância festiva, dir-se-ia circense, dos seus vermelhos, azuis e amarelos, Guadagnino optou por uma ambiência invernosa, repelindo a aplicação de cores primárias. Nesse aspeto, as imagens do tailandês Sayombhu Mukdeeprom constituem uma contribuição decisiva na concepção de Suspiria, não sendo arriscado supor que, em Janeiro, poderemos encontrar o seu nome entre os nomeados para o Oscar de melhor direção fotográfica.
Aliás, importa também destacar a importância da banda sonora, de um romantismo ambíguo e magoado que faz lembrar... Radiohead. E por boas razões, entenda-se: as canções e os trechos instrumentais são assinados por Thom Yorke, a estrear-se como autor de uma banda sonora - numa feliz derivação da narrativa cinematográfica, alguns dos respetivos temas (com destaque para Suspirium) têm estado a circular na Internet através de telediscos de sofisticada manipulação formal.
* * * * Muito Bom