Carta dos dias da peste

Daqui a algum tempo, quem estiver de pé será um sobrevivente, num mundo que há a tentação de esperar diferente - como se a pandemia pudesse ser redentora. Francisco quis juntar-nos nessa promessa.
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Esta semana li um texto poderoso no New York Times. Escrito pela mulher de um paciente de covid-19, descreve como o marido, de 56 anos, que sofre de asma mas costumava fazer passeios de bicicleta de cinco horas, está há 12 dias caído na cama enquanto ela dorme no chão à porta do quarto e partilha com a filha de 16 anos um quotidiano de aflição e limpeza maníaca.

Jessica Lustig, a autora, jornalista do NYT, conta-nos como tenta confortar o marido com uma canção de embalar da infância; como numa cidade tão ocidental e rica é difícil encontrar medicamentos tão comuns e básicos como ibufrofeno e paracetamol, esgotados em todo o lado; como fica acordada à noite a pensar o que acontecerá à filha se também ela ficar doente - já que não pode mandá-la para casa dos avós.

Jessica é classe média. Tem um apartamento na cidade (e entre os seus medos não menciona perdê-lo), um emprego e, uma vez que não nos diz o contrário, sabemos que dinheiro não é para já problema, nem, apesar de se tratar dos EUA, o acesso a cuidados de saúde: o marido está a ser seguido por uma clínica a três quarteirões de casa, o que pressupõe que têm seguro. Tudo isso, que a coloca num lugar de privilégio, serve para que os que como eu estão nesse mesmo lugar sejam capazes de se identificar: isto pode acontecer-nos. Vai acontecer-nos, promete Jessica, nas linhas finais: "As pessoas que passam por nós na rua não sabem que somos visitantes do futuro. Uma visão, uma premonição, uma visitação andante. Eles serão nós: ou o meu marido, com a sua máscara, ou - se tiverem sorte - eu, tratando dele."

Não, não é um telefilme, como grita um dos autarcas italianos desesperados face à irresponsabilidade dos seus munícipes nos vídeos que correm a net e nos fazem ir às lágrimas: está mesmo a acontecer. Nos nossos países, nas nossas cidades - na casa ou prédio ao lado, senão no nosso círculo de amigos e família.

Doentes que entram nos hospitais e não mais verão os seus - isto aconteceu com o pai de uma amiga, há duas semanas, e nem sequer tinha, que saibamos, covid-19; simplesmente ninguém pode entrar para dar a mão, um último beijo, o derradeiro olhar de amor, porque é preciso manter as unidades de saúde o mais estanques possível. Esta crueldade, se necessária, está entre as consequências mais terríveis da doença - e lembra-nos o que aconteceu, há tantos anos que já o tínhamos quase esquecido, aos que morreram de sida no início dessa outra pandemia. De como o medo da pestilência pode deixar-nos tão sós no sofrimento e na morte.

Tenho 56 anos, a idade do marido de Jessica, e a memória clara desse tempo em que nada se sabia da doença que nos EUA foi denominada de "dos três agás", porque matava homossexuais, hemofílicos e havaianos. Lembro-me de como as vítimas foram culpabilizadas, perseguidas, desprezadas, de como levou tempo até que os governos percebessem que tinham de agir, que era preciso apostar na prevenção para todos e no tratamento - quando o tratamento apareceu - porque afinal não afetava só aqueles três grupos, mas "as pessoas normais".

Lembro-me de como de repente aquilo que parecia a normalidade da vida se tornava um risco de morte; de como antes da sida o preservativo era um artefacto quase desconhecido entre os jovens como eu e mesmo entre os adultos - até os que recorriam ao trabalho sexual. De como havia países em que os dadores de sangue recebiam dinheiro e mesmo naqueles onde tal não sucedia, como o nosso, não se perguntava nada aos dadores, de como não se esterilizavam instrumentos de tatuagem e até de dentista, como se faziam campanhas de vacinação nos países em desenvolvimento ou nas forças armadas nas quais a mesma agulha de seringa era usada em dezenas ou centenas.

Lembro-me de como a sida parecia uma coisa longínqua, abstrata, até começar a acontecer a pessoas que conhecia. De como de repente a dúvida não era se podíamos ter mas se podíamos não ter - porque todos tínhamos aquilo a que se dá o nome de comportamentos de risco, sem saber o risco que corríamos. E que desse tempo, os que estamos vivos, quer tenhamos vivido como jovens dos anos 1980 o sex & drugs & rock"n"roll quer tenhamos ido ao dentista, sido vacinados na tropa, tatuados ou tido sexo sem proteção uma vez que fosse, somos todos sobreviventes, mesmo não tendo disso consciência.

Assim será daqui a algum tempo, não sabemos quanto, em relação ao covid-19: quem estiver de pé será por ter sobrevivido. Como e em que mundo não sabemos - há quem se esteja a deitar a adivinhar, quem ponha a hipótese de que a pandemia possa ser redentora, nos faça emendar o que fazemos de errado, valorizar mais os outros de quem neste momento nos separamos, poupar mais o planeta, concentrarmo-nos mais no que de melhor nos une. Tenho dúvidas. E a história dá-me argumentos: todas as grandes tragédias nada mudaram a nossa natureza; todos os grandes medos foram sistematicamente esquecidos; todos os "nunca mais" foram apenas pronunciamentos esperançosos - e como o presente no-lo garante, no ressurgir dos mais tenebrosos e ignaros populismos, do mais desavergonhado racismo e até das apologias nazis nem um século após Hitler.

Tenho medo que tudo o que pensamos neste momento - que esta crise vem provar a necessidade de sistemas de apoio social fortes, de serviços nacionais de saúde apetrechados, de investimento estatal e de união entre países - seja do futuro visto como um erro. Que os serviços nacionais de saúde sejam levados ao colapso pela pandemia e culpabilizados por isso; que o esforço de salvar a economia leve de novo os estados ao tapete e desencadeie a já nossa conhecida ofensiva "dos mercados".

Tenho medo de que ao invés de unir a pandemia divida, ao reerguer as fronteiras e a ideia de que com o mal dos outros podemos bem - e nele nos comprazemos porque quer dizer que estamos melhor. Tenho medo de que como com a sida passámos a ver-nos e aos outros como potenciais contaminantes também com o covid as máscaras, as luvas e o metro e meio de distância entrem na nossa vida como os preservativos entraram, para não mais sair.

Tenho medo de que o vazio da Praça de São Pedro que nesta sexta-feira nos gelou o coração ao ver nela o papa só, a dizer-nos perdidos, frágeis, desorientados e da noite e do silêncio que cobrem o mundo, seja, mais que uma metáfora, um presságio.

"Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso "eu" sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos", disse Francisco, numa oração tão bela quanto dolorosa, pedindo ao seu deus que acorde. Ateia, vi um velho sozinho num lugar antigo e desolado a pedir-nos que encontremos redenção na tragédia: que acordemos e nos salvemos. Porque deus é o nome que inventámos para tudo o que há - e tudo o que há somos nós.

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