"A primeira vez que os galegos vieram em força foi a seguir ao terremoto de 1755. Ajudaram a reconstruir Lisboa"

Brunch com o presidente da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Espanhola, Miguel Seco.
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Das estações de serviço da Repsol aos balcões do Santander passando pelos armazéns El Corte Inglés em Lisboa e em Gaia, não faltam em Portugal sinais do investimento oriundo de Espanha, mas quando Miguel Seco me diz que são mais de quatro mil as empresas com capital espanhol, "e destas 2700 com controlo espanhol" admito que fico surpreendido. É que, além das gigantes, há muitas pequenas e médias empresas espanholas que apostaram no mercado português, como é o caso do restaurante lisboeta que o presidente da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Espanhola (CCILE) escolheu para este almoço, o LA MAFIA se sienta a la mesa, especializado em comida italiana mas, como as letras pequenas do nome revelam, um franchising com origem no país vizinho, de um grupo baseado em Saragoça.

Apesar de Miguel ser economista, e um homem com uma longa carreira na banca, esta nossa conversa não se resume aos números, por muito que impressionem, mas lá voltaremos. Agora pergunto o que fez alguém que nasceu em Santiso, na província da Corunha, em 1960, que estudou em Santiago de Compostela (licenciatura em Ciências Económicas e Empresariais) e em Barcelona (MBA na ESADE em Direção e Administração de Empresas), mudar-se para Portugal com a família em finais de 1998. Foi uma transferência profissional? "Mais que transferido, sou uma vítima da globalização. O banco português onde trabalhava há dez anos, o BPA em Madrid, foi comprado pelo que agora é o BCP. O BCP não queria ter sucursais em Espanha, por isso fomos obrigados a encerrar o negócio lá. A alternativa era ir para a rua ou vir para Lisboa, não foi uma transferência propriamente dita", conta Miguel, entre risos, admitindo que, mesmo se tudo acabou por correr bem, foi um desafio para ele e a mulher, pois tinham já duas meninas e uma mudança de país não estava nos planos do casal.

Hora de pedir os pratos. Miguel, cliente habitual deste restaurante na Duque de Ávila, a poucos minutos a pé da sede da CCILE, elogia os risottos da casa, mas diz que desta vez vai pedir uns medalhões de lombo com bacon. Eu acabo por escolher mesmo um risotto de ragout. Fico rendido ao LA MAFIA se sienta a la mesa, um dos vários bons restaurantes desta zona de Lisboa, muitos deles já conhecidos do presidente da CCILE, seja porque costuma almoçar por aqui quase todos os dias, seja porque quando recebe visitas de Espanha faz questão de levá-las onde se come bem, por vezes, conta, até ao "Laurentina para um belo bacalhau". Para beber, optámos por água e veio uma garrafa de marca Cabreiroa, de uma nascente na Galiza, para surpresa do galego Miguel.

Galego e com "muito orgulho", Miguel sabe que, apesar de tudo, foi um emigrante bem diferente daqueles que ao longo dos séculos vieram desse recanto do noroeste de Espanha para Portugal e sobretudo para Lisboa. E a experiência que teve como presidente da Xuventude de Galicia, fundada em 1908 ("a instituição de origem espanhola mais antiga que existe em Lisboa") fê-lo conhecer bem esse fenómeno migratório: "os galegos emigraram para Lisboa muito mais do que para Madrid. Aliás, a primeira vez que vieram com força foi a seguir ao terremoto de 1755 e tiveram um papel fortíssimo na reconstrução da cidade. Há documentos que mostram que a seguir ao terremoto havia 45 mil galegos em Lisboa. Trabalharam na reconstrução da cidade, no Aqueduto das Águas Livres e um pouco por todo lado. Depois, no século XIX, ficaram com o monopólio da água e em contrapartida tinham de fazer todo o serviço de ajuda aos incêndios. Era uma migração numerosa, mas foi focada sempre na zona sul da Galiza, graças a uma espécie de efeito chamada. Alguns vinham e iam chamando a gente da zona. Aliás, 80% dos galegos que vinham para Lisboa são todos dessa zona que fica até 30 quilómetros da raia. O resto da Galiza quase desconhece por completo a emigração para Portugal. No norte e no centro da região iam mais para as Américas e a partir do século XX para outros países europeus como a Suíça e a Alemanha". Testemunho do dinamismo desses imigrantes é ainda hoje um dos grandes grupos económicos em Portugal ter o nome de um jovem galego que há mais de 200 anos veio para Lisboa e abriu uma pequena loja no Chiado: chamava-se Jerónimo Martins. Dessa época ficou a expressão "trabalhar que nem um galego", que Miguel admite que "soa um bocadinho como ofensiva, mas a verdade é que se trabalhava muito e era gente que se esforçava muito. Era gente, de alguma maneira, que era muito honesta e que valia a pena contratar".

Idioma que esteve na origem do português, o galego é hoje uma língua co-oficial na Galiza, onde coexiste com o castelhano, vulgo espanhol. O presidente da CCILE diz que fala galego quando tem de ser, num contexto mais privado, mas que a sua língua materna é o castelhano. "Todos os galegos na Galiza percebem e falam algo de galego, podemos misturar com o castelhano, mas em princípio todos dominam. E nas novas gerações com mais certeza ainda, uma vez que foi introduzido no sistema educativo nos anos 80. Portanto, neste momento a região é completamente bilingue", explica, acrescentando que noutros tempos, e muito em especial durante a ditadura franquista, o galego era visto como a língua das pessoas do campo e o castelhano a língua de cultura, algo que a democracia e sobretudo o sistema autonómico vieram mudar completamente.

A par da Catalunha e do País Basco uma da três regiões espanholas que reivindica uma nacionalidade história, a Galiza tem, porém, um historial bem menos conflituoso no que diz respeito a independentismo. Miguel reconhece que existe também um movimento nacionalista, que "tem uma expressão política mais ou menos forte de eleições para eleições, que a nível cultural tem até muito força, mas não tem nada a ver com o que é o nível da Catalunha ou do País Basco".

Comento que sem falar sequer de Francisco Franco, o generalíssimo nascido em El Ferrol e que durante quatro décadas pôs e dispôs em Espanha, a Galiza tem dado políticos proeminentes ao país, como Manuel Fraga Iribarne ou mais recentemente Mariano Rajoy, que foi chefe do governo de 2011 a 2018. Agora é Alberto Núñez Feijóo, que foi presidente do governo regional, a Xunta, que à frente dos conservadores do PP ambiciona nas próximas legislativas tirar o poder ao PSOE. Pergunto a Miguel se imagina o conterrâneo como primeiro-ministro e a resposta é sim, com as sondagens a darem o PP muito perto das intenções de voto dos socialistas. Pergunto também se por ser galego Feijóo teria condições para ser um bom mediador entre o governo central em Madrid e os governos da periferia. "Acho que sim, pela sua experiência e porque temos fama, os galegos, de saber negociar".

DestaquedestaqueMiguel Seco conta que é um de seis irmãos e que sempre que podem se juntam todos para conversar sobre política, literatura e o mais que lhes vier à cabeça. E terem todos seguido caminhos diferentes traz uma animação muito especial à conversa, explica, dizendo que "um é economista, outro advogado, outro matemático, outro de filosofia e letras, outro médico e ainda um engenheiro aeronáutico".

Falamos um pouco de como foi diferente o fim da ditadura em Portugal e em Espanha. Miguel recorda-se claramente desse dia 20 de novembro de 1975 em que Franco morreu - "era adolescente e nesse dia e nos seguintes não houve escola". Mas igualmente tem bem na memória o susto que sentiu a 23 de fevereiro de 1981, com o golpe falhado do coronel Tejero, cujos guardas civis ocuparam o Parlamento de metralhadora na mão. "Decidi que fugiria para Portugal se a ditadura voltasse ao meu país", conta. Felizmente, sublinha, "o 23-F falhou e a democracia triunfou. Espanha é hoje uma democracia de sucesso". Sobre a monarquia diz que tem tido um papel estabilizador, que Felipe VI "tem feito um bom trabalho" e que por alguma razão nem os partidos que historicamente se proclamam republicanos convocam um referendo.

E sobre a relação entre o Reino de Espanha e a República Portuguesa? "A relação é mais do que boa, é fortíssima, a todos os níveis. E a nível económico está a crescer continuamente. Em 2021 já superámos os dados anteriores à pandemia. O ano passado o crescimento do relacionamento comercial entre os dois países foi de quase 30%. E este ano continua a crescer. O relacionamento é dos dois lados, pois também está a crescer a presença portuguesa em Espanha. Obviamente há diferenças e assimetria no tamanho, mas é muito forte. E depois a nível político há muita sintonia desde há pelo menos 20 anos, com total independência da cor política de quem quer que esteja a governar em cada um dos dois países. Tem havido muita boa sintonia entre governos de esquerda em Portugal e governos de direita em Espanha, e ao contrário também. Agora, com António Costa e Pedro Sánchez, até são dois socialistas em Lisboa e Madrid."

Miguel, que em outubro celebrará 25 anos em Portugal, foi 19 anos responsável de Negócios com Espanha e diretor do Centro Ibérico de Empresas do BCP. Depois, entre 2018 e 2020, dirigiu a Área de Empresas Ibéricas do Banco Sabadell Portugal. E agora preside à CCILE. Um currículo que lhe permite dizer: "como espanhol que já conhece muito Portugal, continuo a achar que os portugueses conhecem muito melhor o meu país do que os espanhóis conhecem Portugal. Melhorou muito esse conhecimento nos últimos anos, há muito mais presença, há muito mais intercâmbio comercial, mas ainda falta Espanha conhecer muito mais de Portugal. Não só visitar turisticamente, e muitos dizem que conhecem Portugal, precisamente porque visitam, porque é fácil, pela língua, pela amabilidade, pela boa disposição, pelo bem tratados que são aqui, mas depois a realidade do que significa Portugal para Espanha é diferente. Portugal é um país pequeno, tem 10 milhões de habitantes, tem um PIB pequeno, mas, por exemplo, é melhor sócio comercial para Espanha do que a Itália. Espanha vende mais a Portugal do que vende a Inglaterra. Vendemos mais a Portugal do que a toda a América Latina em conjunto. Nós não temos noção desta ordem de grandeza do que representa para nós Portugal. Mas, de qualquer forma, têm chegado novos investimentos espanhóis, novas empresas espanholas. Continuam a vir, isto é contínuo, são maioritariamente PME, todos os anos estão a entrar empresas. Estamos a falar aqui de um relacionamento muito próximo, há muita facilidade também por aqui, temos um sistema financeiro que está dos dois lados da fronteira, temos escritórios de advogados que estão dos dois lados da fronteira, a rede de transportes, a logística, as conexões estão a melhorar (bom, a ferrovia não). Obviamente, as empresas espanholas já tinham historial, desde a entrada na União Europeia conjunta dos dois países, de presença aqui. Muitas vezes refiro-me é que havia muita diferença face ao que é agora a perceção de Portugal, comparativamente à que havia quando cheguei. Algumas empresas, sobretudo as grandes, diziam que o tamanho de Portugal é como o de algumas autonomias, mas já perceberam que este é um país diferente, embora próximo, pois tem uma maneira comercial diferente, que precisamos de conhecer, e não pode ser tudo tratado diretamente desde Espanha. Pelo menos na parte do relacionamento comercial é preciso conhecer em profundidade o país, há pequenas diferenças, a maneira de tratar os negócios, os portugueses dizem que somos muito mais agressivos, mais diretos, mas tudo isso tem de habituar-se também às circunstâncias do próprio mercado".

Estamos a conversar há duas horas. Miguel é um excelente conversador. Fala-me de escritores espanhóis como Miguel Delibes ou Pio Baroja. Dos portugueses, menciona Eça de Queiroz e António Lobo Antunes. Conta que é um de seis irmãos e que sempre que podem se juntam todos para conversar sobre política, literatura e o mais que lhes vier à cabeça. E terem todos seguido caminhos diferentes traz uma animação muito especial à conversa, explica, dizendo que "um é economista, outro advogado, outro matemático, outro de filosofia e letras, outro médico e ainda um engenheiro aeronáutico".

Já o futebol, sobretudo o de clubes, pouco entusiasma o presidente da CCILE. Nem sequer se recorda de ir em miúdo ver jogos do Desportivo da Corunha. " Não tenho clube e mesmo assim batem-me", diz, de novo entre risos. "Quando cheguei a Lisboa disseram-me para não me meter em guerras, para dizer que era do FC Porto, mas levei duplamente, não por dizer isso fora do Porto, mas por ser de fora. Sou muito estranho, gosto de futebol, mas gosto do próprio jogo de futebol, de ver jogar bem. Não ia ver o Desportivo (morei pouco tempo lá), e sou mais do Barcelona do que do Madrid, mas também sou fundador do Clube de Adeptos do Real Madrid em Lisboa, isso já dá uma definição da minha ambiguidade. O que quero é ver o espetáculo do futebol, as cores não importam muito, mas claro que vou por Espanha, nesse aspeto sou um bocadinho nacionalista".

Com a idade da reforma a aproximar-se, Miguel não pensa para já regressar a Espanha. Nunca construiu uma casa na terra, mas a mulher, que é filha única e galega como ele, herdou a dos país em Mondoñedo. Passam lá férias, mas chamam casa é ao Monte Estoril. "Vivi mais anos aqui na zona de Lisboa do que em qualquer cidade espanhola. E sinto-me bem cá. Talvez por o meu pai ter sido um médico rural e estarmos sempre de um lado para o outro, habituei-me bem a ser imigrante".

Despeço-me de Miguel, agradeço por há dias me ter alertado que Jorge Dezcallar, um grande diplomata espanhol, estava em Lisboa a apresentar o seu livro sobre geopolítica Abraçar o Mundo. Acabei por fazer uma entrevista para o DN. E a ideia desta conversa surgiu no final de um debate sobre energia ibérica no Palácio Palhavã, magnífica residência oficial que a embaixadora Marta Betanzos disponibilizou para o evento organizado pela CCILE.

Mesmo no final, volto aos números. Quanto contribuem as empresas com capital espanhol para o PIB português? "18%", é a resposta. E volto a ficar surpreendido, ainda mais quando o presidente da CCILE me diz que estas empregam quase 250 mil portugueses.

leonidio.ferreira@dn.pt

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