"Surpreende-me a frivolidade dos senhores da Igreja"
A Igreja Católica portuguesa reagiu em bloco ao novo romance de José Saramago, ainda o livro estava a ser posto à venda nas livrarias. Os primeiros comentários de uma polémica que está longe do seu auge, e das réplicas que decerto provocará, tiveram origem nas declarações que o Nobel efectuou domingo à noite em Penafiel, onde considerou que "sem a Bíblia seríamos outras pessoas. Provavelmente melhores". Depois, endureceu e afirmou: "Não percebo como é que a Bíblia se tornou um guia espiritual. Está cheia de horrores, incestos, traições, carnificinas." Referiu ainda que costuma chamar ao livro sagrado dos cristãos "um manual de maus costumes".
Para José Saramago, Caim "é uma espécie de insurreição em forma de livro", que pretende levar os leitores à reflexão: "Nós somos manipulados todos os dias. Temos de lutar contra isso. Que a leitura deste livro vos ajude a ver o outro lado." Um conselho do autor do já polémico Evangelho segundo Jesus Cristo, que, garante, não é contra Deus que escreve: "Até porque ele não existe. É contra as religiões." Porque não servem para aproximar as pessoas nem nunca serviram, explica.
As reacções a Caim serão bastantes e diversas e uma das primeiras foi observada no presidente da Câmara de Penafiel, antigo seminarista, que se manteve impávido, evitou a polémica e só disse: "Respeito as opiniões de cada um. Não me atreveria a criticar as suas convicções. Quanto às minhas, guardo-as para mim", disse Alberto Santos.
O escritor não foi apanhado de surpresa pelas reacções imediatas ao seu novo livro. Questionado pelo DN sobre a rapidez da resposta da Igreja, considerou: "O que me surpreende é a frivolidade dos senhores da Igreja. Não leram o livro e vieram logo, com insólita rapidez, derramar-se em opiniões e desqualificações, tanto da obra como do seu autor. Como falta de seriedade intelectual, não se poderia esperar pior. Compreendo que tenham de ganhar o seu pão, mas não é necessário rebaixarem--se a este ponto."
Em resposta à acusação de D. Manuel Clemente sobre a sua "ingenuidade confrangedora" sobre a Bíblia respondeu: "Abençoada ingenuidade que me permitiu ler o que lá está e não qualquer operação de prestidigitação, dessas em que a exegese é pródiga, forçando as palavras a dizerem apenas o que interessa à Igreja. Leio e falo sobre o que leio. Para mistificações não contem comigo."
Também não evitou comentar as afirmações do porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, que sugeriu "ser uma operação de publicidade" dizer mal da Bíblia: "O padre Manuel Morujão já disse que a leitura de Caim não é uma das suas prioridades. Agradeça-se-lhe a franqueza. Estranha coisa, porém, é um porta-voz que não sabe de que está a falar."
Inquirido ainda sobre se este regresso a um tema religioso denotava uma fixação, José Saramago foi claro: "É um motivo de reflexão, não uma fixação." Depois de ter escrito sobre a Bíblia, só faltava saber se pretende futuramente escrever sobre o Alcorão, ao que respondeu: "Não está nas minhas intenções, mas nunca se sabe."
Uma coisa é certa, pela quantidade de autógrafos dados em Penafiel, Caim não vai cair no esquecimento dos fiéis de Saramago.