"Exponho-me no livro, mas não vem daí mal ao mundo"

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Porque é que chamou a este novo livro, No Teu Deserto,  um "quase romance"?

Não sabia como é que lhe havia de chamar e não gosto da palavra novela.

Por causa das telenovelas brasileiras?

Novela, novelo, telenovela... não gosto da associação. E saiu-me essa do quase romance que o editor (da Oficina do Livro), o António Lobato Faria, primeiro estranhou, mas depois gostou. Aquilo é um quase romance, de conteúdo, de tamanho, de estrutura narrativa. E quem ler até ao fim percebe o sentido. É uma quase história, quase relato de viagem, quase romance de amor, é quase uma carta grande...

O livro conta a história de uma viagem de jipe que um jovem jornalista de 36 anos faz ao deserto, com uma rapariga de 21, que não conhecia,  no lugar do pendura. É a história dessa relação de umas semanas. Como lhe aconteceu escrever uma coisa tão diferente das outras anteriores, que eram romances históricos, pesados?

Isso não sei. Comecei a escrever isto estava a meio da escrita do Rio das Flores, tive o célebre bloqueio dos romances grandes. Parei uns meses e, enquanto estava parado, porque eu gosto muito de escrever, tenho que escrever todos os dias, de repente comecei a escrever isto. Depois parei, acabei o Rio das Flores e quando acabei retomei isto. Quando comecei a escrever nem fazia ideia, sequer, o que podia ser. No princípio era um texto para a gaveta, quase uma carta. Depois comecei a achar graça. No fim de contas o que fiz foi pegar numa carta que era para ser pessoal, fazer uma espécie de carta aberta, para os leitores também. Não teve a ver com nenhuma coisa que aconteceu na sua vida, nessa altura?

Não. A história do livro está escrita logo no início do livro, o que me levou a escrever: uma fotografia que encontrei, caída de uma gaveta.

A rapariga da fotografia, a Cláudia, a sua inspiração, morreu. Se ela não tivesse morrido, tinha editado o livro?

A história seria muito diferente. O que faço também é resgatar uma dívida de gratidão, com 20 anos de atraso. Se ela não tem morrido, não havia dívida a resgatar. Havia apenas a recordação de uma viagem a dois, óptima, mas não havia dívida nenhuma a resgatar. A morte, aqui, veio criar uma dívida que eu percebi que ainda não tinha pago.

Relatando uma história real, não tem medo de se expor de mais neste livro?

Procuraram-me em vão nos outros livros, porque eu não estava lá. Isto é uma coisa diferente, podia ser um diário, podia ser o meu diário.

Mas não está a imaginar já as revistas cor-de-rosa todas a irem à procura da Cláudia na sua vida, a tentar encontrar fotos dela?

Francamente não! Mas, como já procuram coisas tão fantásticas sobre mim, são capazes disso e de muito mais. É-me indiferente. Exponho--me, mas também há aqui um contrato de intimidade entre mim, ela e o leitor. Acho que este livro é uma relação a três, de facto, eu, Cláudia e o leitor. E as pessoas que me lêem, que me seguem, não vão achar que eu tenha exposto nada que não fosse susceptível de ser exposto, tanto de mim como dela. Vão achar apenas que é uma coisa mais pessoal, mais intimista. Mas também daí não vem mal ao mundo.

Mas refreou-se de escrever alguma cena por medo dessa exposição?  

Os limites da exposição a que me submeti são aqueles que eu tracei. É uma fronteira, e eu não vou além dessa fronteira. Não vou porque não quero ir. E, portanto, a fronteira é minha, não foi por medo dos outros, foi uma coisa pessoal. Quando eu abro, eu abro aquilo que eu acho que faz sentido abrir, em nome de qualquer outra coisa. Não é para satisfazer curiosidades nem voyeurismos, é porque eu acho que faz sentido. E, neste caso, ou não publicava o livro, ou, publicando, tinha uma dose de exposição e de risco pessoal que assumo, mas que vai até onde eu deixo ou até onde eu quero.

Este livro podia ter sido escrito por uma mulher?

Sim, tranquilamente. Eu para já acho que não há uma escrita feminina e outra masculina. Há boa e má, ponto final. E tomara eu escrever como a Marguerite Yourcenar… Portanto não acredito nessa coisa de que há uma sensibilidade que tem que ser feminina e que os homens que são dotados de sensibilidade têm uma escrita feminina, ou conseguem transplantar-se para a cabeça de uma mulher. Acho isso uma coisa absurda. Basta observar, estar atento e ser sensível para se perceber os dois lados do mundo.

Este livro é uma coisa muito nostálgica sobre a juventude.

Também é.

Está a sentir-se velho?

Acho que a gente sente-se mais velha todos os dias. Mas eu ainda não acordei para o dia em que disse: "Estou velho, a partir de hoje estou velho". Agora, a ideia da nostalgia da juventude… Não é propriamente nostalgia, é um bocado o elogio da juventude, o privilégio. Por exemplo, eu digo no livro que nunca me tinha sentido tão novo na vida como aos 36 anos. Nessa altura eu pensava, quando ia no avião, "se o avião cair, é justo, porque eu já vivi tanto que é justo". Se calhar, agora, 20 anos depois, eu não quero que o avião caia já, já não acho que seja tão justo, acho que ainda me faltam muitas coisas para fazer e que eu gostava de fazer.

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