A entrevista mais antiga que Mário Soares deu ao Diário de Notícias foi em 6 de agosto de 1974.
A entrevista mais antiga que Mário Soares deu ao Diário de Notícias foi em 6 de agosto de 1974.Foto: DR

A primeira entrevista de Mário Soares ao DN. Em 1974, anunciou que o "império colonial" estava "em vias de ser expressão do passado"

A conversa com o fundador do PS, na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros do II Governo Provisório, foi conduzida pela jornalista Manuela de Azevedo: "Em Mário Soares subsistem claras virtudes feitas de afável gentileza, simplicidade e verdade."
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Mário Soares nasceu a 7 de dezembro de 1924. No dia em que se assinala o centenário do nascimento do antigo Presidente da República, que morreu em 2017, o DN recupera a primeira entrevista dada ao nosso jornal pelo fundador do PS, antigo primeiro-ministro, Presidente da República e político destacado na luta pela democracia. Era dia 6 de agosto de 1974.

A conversa foi conduzida pela jornalista Manuela de Azevedo. Na altura, Mário Soares era ministro dos Negócios Estrangeiros, no II Governo Provisório, liderado por Vasco Gonçalves.

O tema mais marcante, puxado para título, era a descolonização, ainda no rescaldo do 25 de Abril, e vinha com um aviso do político: "A circunstância do império colonial português estar em vias de ser liquidado vai implicar transformações muito acentuadas no nosso sistema de vida, transformações de natureza social, de natureza económica."

Mas com um reverso, que passava por canalizar "os milhões de contos que a guerra devorava" para "obras de desenvolvimento do país e do interesse coletivo".

A entrevista também é introduzida com um recado da jornalista, aos seus pares e aos leitores: "Podia ter feito o espanto do jornalista vindo do jornalismo anterior a 25 de Abril, em que tudo era proibido perguntar e em que tudo era proibido responder. Aqui é o ministro que francamente desafia o atrevimento da repórter: «Pergunte à vontade. Respondo a tudo.»"

A primeira pergunta, no entanto, não correspondeu ao "escândalo" que tinha sido anunciado, passando apenas por questionar Mário Soares sobre se, na qualidade de secretário-geral do Partido Socialista, teria influência "nas atitudes do ministro de um Governo de coligação".

"É evidente - diz ele - que não posso deixar de ser fiel intérprete do meu partido. Mas sei distinguir entre as duas funções e sei perfeitamente que o ministro dos Negócios Estrangeiros não pode fazer uma política partidária, faz a de Governo Provisório, que é de política nacional."

Com esta resposta, controlada, lembra ainda que as linhas políticas do Governo de Vasco Gonçalves foram ratificadas pelos três partidos que integram a coligação - PS, PPD (PSD) e PCP -, para além de estarem de acordo com o "Programa do Movimento das Forças Armadas". Por este motivo, garante Mário Soares, nunca fez "política partidária".

"Pelo contrário, sou ministro ao serviço exclusivo do Governo, que é o mesmo que dizer do meu país."

Apesar da segurança demonstrada por Mário Soares, Manuela de Azevedo rebate, lembrando que as "declarações do general Spínola" deixam transparecer "referências mais ou menos veladas de significado idêntico ao que" sugerira.

Mas Mário Soares mantém a segurança e afirma que nunca se sentiu atingido pelas palavras do homem que na altura ainda era Presidente da República. E até vai mais longe: "Nele encontrei um grande estímulo, uma grande compreensão, relativamente à minha actividade e, até mais do que isso, relativamente à ideia de que a minha posição, neste momento histórico que o país atravessa, ser extremamente útil à minha actividade de ministro do Negócios Estrangeiros."

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Primeira página do Diário de Notícias em 6 de agosto de 1974.

Não ficando satisfeita com a resposta de Soares, a jornalista insiste na mesma pergunta, mas alargando-a a "outras ideologias", que, disse, "fazem às vezes referência à intromissão de interesses partidários nas suas opiniões governamentais."

Hábil com as palavras, o governante não se desmanchou em nenhum momento, apesar de afirmar que não sabia a que é que a jornalista se referia.

"Mas, de facto, tenho visto críticas partidárias aos políticos, através da sua acção ministerial. O que posso garantir é que, quando se criticam os partidos e os políticos, em geral está a fazer-se uma determinada política que não é, evidentemente... uma política democrática. Como sabe, a democracia  pressupõe a livre escolha e esta só pode ser feita num regime em que haja partidos."

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Página que contém a primeira entrevista que Mário Soares deu ao DN, a 6 de agosto de 1974.

A jornalista acabou por mudar de ângulo e inquiriu Mário Soares no sentido de perceber se o socialismo acabou por sair reforçado na "recente reforma minesterial", considerando "que nem todos os membros do Governo, de expressão socialista, estarão filiados no Partido socialista".

"Não saiu reforçado. Tem a mesma força simplesmente. Nesta crise já vencida o PS verificou que a balança pendeu no sentido que era a sua apreciação e da sua análise política", respondeu Soares.

Algumas perguntas à frente, Manuela de Azevedo pergunta ao ministro se o PS acaba por assumir o "papel de medianeiro" dentro de um Governo de coligação marcado por "ideologias extremistas" entre si, referindo o PPD e o PCP.

"Para mim, o problema não constituirá nunca formas de insolubilidade, primeiro porque estamos a executar um programa comum - o das Forças Armadas -, depois porque a experiência foi feita com êxito na Europa, em ocasiões de crise mais aguda. Lembre-se de que se assistiu a idênticas soluções depois da Segunda Guerra Mundial. A França e a Itália, nomeadamente, depois da queda do fascismo e do nazismo, constituíram governos de coligação, normalmente tripartidos, em que estiveram representados os católicos do centro-direita, os socialistas e os comunistas", retorquiu Soares.

Mário Soares, para justificar esta análise, diz que os partidos que formam o Governo são animados com o "espírito de resistência" que proliferou na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Para além disto, lembrou que Portugal foi seguindo o mesmo caminho que os outros países europeus, mas sofre com o "anacronismo que se prolongou", com "trinta anos de fascismo".

"A sua queda, para nós, representa a libertação. E sendo a libertação é natural que tenham vindo ao Governo aqueles partidos ou aquelas forças que constituíram, verdadeiramente a resistência ao fascismo."

Sobre o Partido Comunista, o antigo ministro considerou "que teve uma posição de combate válido, durante os anos negros do fascismo, e foi sempre objecto de duríssima opressão". Por seu lado, o PS teve os seus dirigentes na vanguarda da resistência "desde a primeira hora do 28 de Maio".

No que diz respeito ao PPD, respondeu ser composto por "homens que, durante o período do caetanismo, acreditaram na viabilidade de uma transformação no interior do regime, mas que depois se convenceram de que essa via estava bloqueada e passaram corajosamente à oposição".

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