Sim, pode tudo ficar muito pior do que está
Estou sentada no plateau poucos minutos antes de entrar em direto, para comentar a Convenção do Chega. Vejo-o aproximar-se. Cumprimenta os jornalistas com um gracejo qualquer que desbloqueia a conversa. É um homem alto, de meia-idade, encorpado, careca. Uma figura imponente, que fala num tom estudadamente pausado. Esforça-se por parecer simpático, sorri. Faz um ar quase infantil, enquanto me tenta convencer de que, no seu partido, não há xenofobia, nem racismo. “Estamos por quem vem por bem”, assegura, no tom estudado de quem quer normalizar uma atitude de desconfiança em relação ao outro, como se ela fosse aceitável. O Chega quer parecer aceitável e esta conversa é sobre isso.
Baixando a voz, critica o desprezo que denota nos comentadores que se referem aos deputados do Chega como alguém com a 4.ª classe. “O meu pai tem a a 4.ª classe”, atira, ofendido. Para este homem, há uma elite que o incomoda. Uma elite que tem voz, que define as regras do aceitável e que o deixa de fora. O ressentimento é palpável. E é talvez a verdadeira cola que une todos os que se aproximam do Chega. Uns vêm por nostalgia de um passado em que ser homem, branco e heterossexual lhes conferia um poder simbólico que parece agora ser questionado (embora seja óbvio que está longe de ter ruído). Outros porque sentem que estão a ficar para trás, num sistema que fala muito de mérito, mas que praticamente não o premeia. E outros ainda simplesmente porque estão zangados e querem abalar um regime que sentem que não lhes tem dado aquilo que esperavam.
A esta amálgama de raiva e desesperança, o Chega responde atirando as culpas para o “outro”, o imigrante, o homossexual, o cigano, o transexual, o político, o corrupto. Lança promessas impossíveis, manipula números, fala de um país que não existe. “Se no dia 10 de março sair de casa, é para votar neles”, diz-me alguém com quem me cruzo num trabalho. Explico que os 426 milhões de euros que André Ventura supostamente quer tirar à “ideologia de género” servem para financiar creches gratuitas, licenças de parentalidade, passes sociais mais baratos e apoio a vítimas de violência doméstica. Falo dos números que provam que temos imigrantes que contribuem mais para a Segurança Social do que recebem em apoios sociais e de como, sem as transferências do Estado, que Ventura diz querer cortar, 42% dos portugueses estariam em risco de pobreza. A resposta é um encolher de ombros. “Os outros não fizeram melhor.”
É nesta encruzilhada em que estamos. Décadas de uma política de desmantelamento do Estado Social, montada em cima de um discurso que diaboliza os impostos e cria o mito do cidadão meritocrático e empreendedor que será bem-sucedido se se esforçar e o Estado não o atrapalhar, trouxeram-nos aqui. Um momento em que a razão não chega, os argumentos são desvalorizados, as explicações caem no saco-roto de quem está farto e desistiu. “Pior do que está não fica”, respondem.
Mas fica. Já está a ficar pior, quando um jornalista do Expresso é agredido e retirado à força de uma conferência em que Ventura falava. Está a ficar pior, quando se perde a vergonha de escrever insultos contra imigrantes nas redes sociais. Está pior, quando os comentários televisivos são uma espécie de nota artística à habilidade política de quem é tão eficaz a enganar e manipular. E ficará pior, porque o que o Chega promete a este Exército de ressentidos mais não fará do que proteger os vencedores do sistema e deixar mais frágeis os que nada têm.
margarida.davim@dn.pt