Construir em bitola ibérica a nova linha ferroviária entre Porto e Lisboa parecia uma opção pacífica em Portugal. No entanto, os novos regulamentos europeus e as opções tomadas por Espanha ainda podem trocar as voltas e retomar os planos para que a ligação de alta velocidade entre as duas maiores cidades portuguesas seja construída, logo à cabeça, seguindo a distância-padrão entre carris (bitola europeia). Para ficar protegido da legislação europeia, a Infraestruturas de Portugal (IP) encomendou uma análise custo-benefício comparativa entre construir a nova linha em bitola ibérica (carris separados por 1668 milímetros) - e depois mudá-la para a medida-padrão - ou então executar a empreitada já com os carris separados por 1443 milímetros. A análise tem de estar feita até ao final do mês de abril.O estudo encomendado à consultora TIS serve para pedir uma exceção temporária aos regulamentos europeus, que entraram em vigor em meados do ano passado, já depois de a IP pôr em marcha duas das três partes da nova linha, entre Porto e Soure e entre esta localidade e o Carregado. Serão analisadas quatro opções: construir a nova linha Porto-Lisboa em bitola ibérica e com travessas polivalentes para uma migração futura; pôr a bitola ibérica entre Porto e Carregado e estreitar a distância entre carris quando for construída a ligação entre Carregado e Lisboa, já no padrão europeu; construir toda a nova linha já em bitola europeia e, depois, garantir a ligação às variantes em bitola ibérica através de aparelhos de mudança. Não é tida em conta para a análise a localização do futuro aeroporto de Lisboa na Base Aérea de Alcochete..CP na cauda da ferrovia europeia no que toca a pontualidade.A IP assume que se a nova linha for construída em bitola ibérica com travessas polivalentes, posta em funcionamento e, depois, ser necessário estreitar os carris para o padrão europeu, isso vai implicar a redução do número de viagens de alta velocidade entre Lisboa e Porto entre um e dois anos. O processo de migração implica que haja troços temporariamente reduzidos a via única.Por outro lado, se construir a nova linha já em bitola europeia, não fica perdida a ligação à restante rede ferroviária nacional, um dos pilares do mais recente projeto de alta velocidade em Portugal: o comboio pode chegar às estações da Linha do Norte de Coimbra e de Aveiro e da futura Estação de Leiria (Linha do Oeste) através da colocação de um terceiro carril nas variantes entre a linha de alta velocidade e a restante rede ferroviária nacional - aumentando custos de manutenção - ou através de aparelhos de mudança de bitola - o que implica a compra de comboios de eixos variáveis de alta velocidade.Resta saber de que forma a União Europeia dará um financiamento-extra para garantir o cumprimento dos regulamentos comunitários sem criar uma “ilha ferroviária” dentro de Portugal.A alta velocidade em bitola ibérica existe em Espanha nas regiões da Galiza e da Estremadura. Isso tem sido um argumento para defender o projeto português com a medida mais larga entre carris. Mais a norte, a ligação Ourense-A Coruña-Vigo conta com aparelhos de mudança de bitola, comboios de eixos variáveis e travessas polivalentes. O processo de migração terá impacto na futura ligação entre Porto-Valença-Vigo.Entre Madrid e Badajoz, o troço Badajoz-Plasencia funciona, para já, em bitola ibérica, mas está pronto para uma futura migração; mais adiante, o novo percurso Toledo-Talavera de la Reina terá via dupla e já será construído em bitola europeia, com prazo previsto de conclusão para 2030, anunciou na semana passada o Governo de Espanha.Isto implica que, a prazo, toda a linha Madrid-Badajoz também terá de mudar de bitola, o que terá impacto no futuro da ligação entre Lisboa e Elvas e na construção da terceira ponte sobre o Tejo em Lisboa - entre Évora e Elvas, foi construída uma linha em bitola ibérica com travessas polivalentes, mas a plataforma acomoda uma segunda via, que já pode ter carris na medida padrão.Havendo acordo ibérico, evita-se o isolamento entre bitolas, sobretudo no serviço para passageiros. A mudança das travessas não afeta o transporte de mercadorias, que utiliza a rede convencional em toda a Península Ibérica. Em Espanha, o corredor mediterrânico vai mesmo passar a incluir terceiro carril para flexibilizar o tráfego ferroviário de mercadorias de portos como Barcelona e Valência até Algeciras, entrando depois em Marrocos, cujos carris estão à distância-padrão.Análise de BruxelasAté 19 de julho de 2026, Portugal tem de submeter à Comissão Europeia “uma avaliação que indique as linhas ferroviárias existentes, situadas nos corredores europeus de transporte, tendo em vista a eventual migração destas para a bitola nominal da norma europeia de 1435mm”. O documento “deve incluir uma análise dos custos e benefícios socioeconómicos quanto à viabilidade da possível migração” e uma “avaliação do impacto” da alteração na interoperabilidade, isto é, na possibilidade de um mesmo comboio circular em vários países sem necessitar de grandes alterações.A mesma análise tem de ser feita no caso de o país “não construir novas infraestruturas ferroviárias em conformidade com a bitola nominal da norma europeia de 1435mm e uma avaliação do impacto na interoperabilidade”. O processo terá de ser coordenado com Espanha para os troços ferroviários que envolvem os dois países.No máximo um ano, depois de submetida a avaliação, Portugal tem de indicar as linhas que se situam nos corredores transeuropeus e qual deve ser o calendário da migração. A partir dos dois documentos, a Comissão Europeia pode conceder uma isenção temporária a Portugal, caso seja negativa a análise dos custos e dos benefícios socioeconómicos de uma eventual construção das novas linhas, logo à partida, em bitola europeia.O pedido de isenção será avaliado à luz da justificação apresentada, bem como, se for caso disso, em termos do seu “impacto significativo na interoperabilidade e na continuidade da rede ferroviária”. Bruxelas pode pedir mais dados 30 dias depois de Portugal entregar o pedido de isenção. Se não for suficiente, há ainda um segundo pedido adicional de informação, no prazo de 30 dias a contar da data de receção dos elementos. Findo este período, será preciso esperar, no máximo, seis meses, para a decisão final da Comissão Europeia. A isenção é temporária embora não esteja definido por quantos anos.A Finlândia é outro dos países europeus que não segue, para já, os padrões europeus: grande parte da rede ferroviária foi construída até em bitola russa, para se ligar à Rússia, país do qual dependeu até à independência, em 1917. Até ao início de 2024, mudar de bitola não estava nos planos. Só que o prolongamento da invasão da Ucrânia pela Rússia e a necessidade geoestratégica de se aproximar mais do centro da Europa estão a levar o país a reconsiderar as contas feitas em 2022, de que haveria mais custos do que benefícios em alterar a distância entre carris.Também por questões geoestratégicas, o mais recente mapa dos corredores transeuropeus passou a incluir rotas militares, que permitem o transporte de equipamento pesado por via ferroviária.Resta saber se o Governo vai determinar que a IP aguarde pela avaliação de Bruxelas para ter toda a segurança na construção da linha Porto-Lisboa ou se o país vai preferir avançar já para as obras e depois reduzir, já com a linha em funcionamento, a oferta de viagens para passageiros.