Como Portugal se tornou um país menos seguro
Na edição de 2014 do famoso “Índice Global da Paz” (Global Peace Index) Portugal estava em 14º lugar em 163 países. No ano seguinte, “saltava” para o 8º, entrando no rol dos 10 países mais seguros/pacíficos do mundo, de onde não mais saiu até agora, tendo chegado em 2017 a ocupar o 2º lugar, descendo entretanto para o atual 7º (a nível mundial) e 5º na Europa, a 0,27 pontos da primeira classificada, a Islândia.
Dificilmente o retrato de um país inseguro. Há no entanto quem - caso do primeiro-ministro, Luís Montenegro - assevere que, embora o país seja efetivamente seguro, é preciso “não ficarmos à sombra da bananeira” e certificar que se trabalha para que essa mesma segurança não se perca. O que no entender do chefe do governo passa por inundar certas zonas de Portugal de polícias de shotgun sob a divisa “Portugal sempre seguro” e fazer declarações solenes ao país sobre a matéria rodeado de chefes de polícia e de ministras em função de bibelôs, enquanto debita o número de automóveis fiscalizados e de detenções realizadas, qual super-assessor de imprensa das forças de autoridade.
Felizmente, o ridículo político não faz parte dos indicadores do Índice Global da Paz (IGP), ou Portugal tinha afundado uns bons lugares na lista. Mas, já que a descida recente do país no mesmo é num dos argumentos utilizados comummente para certificar que já fomos um país muito mais seguro e nos encaminhamos agora para a barbárie, vale a pena investigar quais são os indicadores utilizados (pontuados de 1 a 5, sendo 1 o melhor e 5 o pior; quanto menos pontuação os países têm, mais sobem no ranking), e o que justifica a variação verificada na posição portuguesa.
A primeira conclusão a tirar é que no que respeita ao indicador “criminalidade percebida pela sociedade” Portugal tinha, no seu “melhor ano”, uma pontuação mais alta (portanto pior) da que tem na última edição (a de 2024): era então 2, agora é 1,75. Curioso notar também que no país que em 2024 se classificou, na pontuação global, no segundo posto, a Irlanda, este indicador é de 2,1; no terceiro lugar, a Áustria pontua 1,85; a Nova Zelândia, em quarto lugar, ostenta 3.
Se calhar vale a pena informar que este indicador é baseado na resposta à pergunta “sente-se seguro ao caminhar só, à noite, na sua cidade ou área onde vive?”, e portanto é mesmo uma medida da famosa “percepção” da insegurança, a qual não deriva forçosamente de experiências diretas e pode ser influenciada por muitos fatores, desde logo o noticiário dos media, etc.
Mas vamos a medidas clássicas, factuais, que associamos a insegurança. Uma é o “crime violento”, que faz obviamente parte deste índice; outra é o número de homicídios por 100 mil pessoas. No que respeita ao segundo, anote-se que a pontuação de Portugal em 2024 - 1,39 - se mantém praticamente inalterada desde 2021 e que no “melhor ano”, 2017, foi de 1,48 (pior, portanto). Por outro lado, a nossa amiga Irlanda exibe, no segundo posto do índice de 2024, 1,43; a Áustria, no 3º lugar, tem 1,44.
Quanto ao “crime violento”, bom: Portugal em 2024 está, com 1, no mesmo nível que a Islândia (país que encima o índice desde a sua primeira edição, em 2007), da Áustria, da Suíça (que em 2024 está no 6º lugar do índice geral) e da Nova Zelândia, e abaixo da Irlanda (1,5).
Por aqui não conseguimos perceber por que raio Portugal desceu no ranking desde 2017, pois não? Vamos então ao que mudou - na perspectiva do índice, claro - para pior.
Um indicador que piorou foi, por exemplo, o da “instabilidade política”, que em 2017 era o mais baixo possível - 1 - , e assim continuou até à edição de 2022, tendo em 2023 “saltado” para 1,375, descendo ligeiramente em 2024 para 1,25. Entre as perguntas cujas respostas contribuem para as subidas e descidas deste indicador estão estas três: “Qual é o risco de que nos próximos dois anos ocorra turbulência social significativa?”; “Quão claros, estabelecidos e aceites são os mecanismos constitucionais para a transferência pacífica de poder de um governo para outro?”; “Quão provável é que um partido ou grupo de oposição chegue ao poder e cause uma deterioração significativa na operação das empresas?”
Também no “terror político” se observou no caso português um aumento assinalável: em 2021 passou de 1 para 1,5, mantendo-se assim até 2023; em 2024 escalou para 2.
Mas que raio é “terror político”, perguntar-se-á. Pois bem, diz o “explicador” do IGP que este indicador mede os níveis de terror e violência políticos verificados num país no ano em causa. Enquanto que no nível 1 estão os países com um forte Estado de direito, nos quais as pessoas não são presas pelas suas ideias, a tortura é “rara e excepcional” e os “assassinatos políticos” extremamente raros, no nível 2 (onde Portugal foi parar em 2024) há “alguns casos de detenção por atividade política não violenta, sendo a tortura e os espancamentos excecionais e os assassinatos políticos raros”.
Assim de repente, vêm à mente as detenções de ativistas climáticos e as queixas destes - algumas noticiadas pelo DN - de maus-tratos pelas polícias.
Outro indicador que se pode relacionar com este é o de “manifestações violentas”, cujo nome é enganador, já que inclui não apenas os casos em que os manifestantes recorrem à violência mas também aqueles em que manifestações pacíficas são alvo de violência, nomeadamente da polícia. Se em 2017 Portugal pontuava 1,25, baixando para 1 em 2018, em 2019 - quando ocorreu na Avenida da Liberdade uma manifestação espontânea de afrodescendentes, na sequência do “caso Jamaica” (relacionado com violência policial), tendo a polícia, alegadamente em resposta a arremesso de pedras/objetos, “carregado” e chegado até a disparar balas de borracha - a pontuação passou para 1,75 e em 2020 para 2,75 (o que poderá estar relacionado com as ações policiais no contexto da pandemia). Logo a seguir desceu para 1,75 e em 2023 e 2024 foi de 1,5.
Há muito mais indicadores no IGP (são ao todo 26) e em alguns deles a pontuação de Portugal não mexe há pelo menos 10 anos, mantendo-se no nível mais baixo - caso de “facilidade no acesso a armas”, “conflito organizado interno”, “atividade terrorista”, “mortes por conflito interno”, “número de refugiados e pessoas deslocadas internamente”, “relações com países vizinhos”, “mortes por conflito externo” e “combate em conflitos internos”.
No que respeita a importação e exportação de armas, “número de pessoal militar”, “armas nucleares e pesadas”, “despesa militar” e “militarização”, indicadores nos quais quanto maior for o investimento em forças armadas e militarização pior a pontuação, Portugal tem tido valores sempre acima de 1 e abaixo de dois, sem se notar, desde 2017, uma variação muito expressiva. Há no entanto um indicador relacionado no qual a pontuação se agravou bastante: o “combate em conflitos externos”. Em 2017, era 1,6; em 2021 já era 2; em 2023 passou para 2,5 e em 2024 subiu para 2,575.
Outro indicador no qual o país está sistematicamente mal pontuado é na proporção da população prisional face à população geral, embora melhorando face a 2017 (quando, recorde-se, chegou ao 2º lugar no índice). Aí o valor foi de 2,063, tendo descido nos anos seguintes até 1,881, subindo em 2024 para 1,929.
Mas, no que a Portugal respeita, a pior pontuação é a atinente ao número de polícias em relação com a população. Não por, como decerto tenderá a aventar o típico consumidor da CMTV, haver poucos, quase nenhuns, mas exatamente pelo contrário. De acordo com a escala do IGP, se no nível 1 há até 199 polícias por 100 mil habitantes e no 2 até 399, o nível 3 corresponde a entre 399,9 e 599 polícias por 100 mil habitantes. Com um efetivo de mais de 40 mil agentes policiais (entre PSP, GNR, PJ e ASAE), o país nunca conseguiu, em 10 anos, ter pontuação inferior a 3 neste indicador. Nos seis primeiros lugares de 2024, vemos a Islândia com 1,89, a Suíça com 2,08, a Irlanda 2,76 e a Áustria 2,8.
Parece pois que para melhorar o seu lugar no Índice Global da Paz Portugal não tem outro remédio senão o de dispensar uma parte do corpo policial, diminuir a violência policial - nomeadamente sobre manifestantes e ativistas políticos pacíficos -, passar a meter e a manter menos gente na prisão (é de resto, na Europa, o país com maior duração de penas) e gastar menos nas forças armadas. Ou isso ou deixar de usar a sua pontuação neste ranking para conversas demagógicas e ignorantes sobre insegurança.