Etologia europeia
Em tempos que parecem hoje quase lendários, por tão distantes e estranhos ao estado presente das coisas, a UE aparentava ter a visão de um desígnio estratégico comum. Promessas de paz, sustentabilidade, cooperação internacional davam-lhe rosto próprio.
Sobre isso se derramou muita tinta nas páginas de revistas de ciência política e relações internacionais. Será que o euro iria disputar a hegemonia global do dólar? Será que a condenação aberta, em 2003, por parte da França de Chirac e da Alemanha de Schröder, da ilegal, injustificada e sangrenta invasão norte-americana do Iraque, poderia prenunciar uma autonomia crescente da UE no seio de um mutável sistema internacional? Será que a proximidade entre Alemanha e Rússia, em matéria energética, poderia ser o embrião da formação do temível titã geopolítico, do Atlântico ao Pacífico, pensado pelos estrategistas Mackinder e Haushofer, e que nunca sai dos pesadelos anglo-saxónicos?
A guerra na Ucrânia revelou que Washington nada tinha a temer. A turbulenta Europa, que os EUA por duas vezes pacificaram, é hoje uma coleção de corpos políticos, unidos pela elementar pulsão do medo, que desagua no mimético impulso da submissão.
Hoje, a UE encontra-se desprovida de alma e projeto. Limita-se a reagir e a obedecer. Na verdade, poderia ser de outro modo? Será que os sobreviventes de duas guerras, que dizimaram o escol da juventude europeia, teriam o engenho e ousadia de partilhar a responsabilidade pelo futuro?
Os governantes europeus seriam hoje incapazes de perceber a frustração de Jean Monnet quando viu fracassar, em 1954, o projeto da Comunidade Europeia de Defesa, cuja duração deveria prosseguir mesmo depois da extinção da NATO. A Defesa Europeia é hoje uma competição entre países, para saber qual deles tem a maior lista de compras de material de guerra ao complexo militar-industrial de Washington.
Uma lastimável demonstração da incondicional submissão europeia perante o Leviatã norte-americano ocorreu no final da Cimeira da NATO, quando os líderes europeus (Macron, Scholz, Melloni…) desfilaram, numa vénia servil perante Biden, considerando o colapso das suas faculdades intelectuais, à vista do mundo, como um vulgar “deslize de palavras”...
Depois de este, sem rebuço, ter sido defenestrado da recandidatura, cresceram as vozes europeias encantadas com o génio invisível de Kamala Harris.
Se, ou quando, Trump voltar à Casa Branca, não faltarão os protestos solenes, individuais e coletivos de vassalagem europeia. Quem quiser perceber o futuro próximo da UE deve renunciar às ciências sociais. Socorra-se antes de Konrad Lorenz e Desmond Morris. A Etologia explica mais fundo do que a teoria política.