Uma belíssima surpresa vinda da Albânia com ajuda portuguesa da produtora de Maria João Mayer, Maria & Mayer. A Cup of Coffee and New Shoes On representou a Albânia na corrida ao Óscar de melhor filme estrangeiro e fez uma bonita carreira no circuito dos festivais internacionais. Um exemplo de um cinema independente europeu capaz de contar uma história universal sem perder duas coisas que não costumam andar juntas: um gesto de cinema autoral com severidade extrema e uma vontade de partilhar emoções fortes. .O filme baseia-se na história de dois irmãos belgas surdo, criadores de sapatos, que gradualmente foram ambos perdendo a visão, tendo depois decidido terminar a vida através de eutanásia. Um relato que é direcionado para Tirana para dois simpáticos gémeos carpinteiros, Agim e Gezim, inseparáveis, quer na vida, quer no trabalho. Vivem juntos e não há fronteiras entre eles: Agim tem uma namorada, a luminosa Ana, e naquele apartamento em Tirana não há ciúmes. A vida de ambos parece seguir bem: têm um negócio bem lançado, integram-se com a comunidade e são estimados, mas surge um momento que muda tudo: Gezim, ao conduzir, percebe ter problema oftalmológico. Logo a seguir, vão ao médico e descobrem que têm uma doença genética que os vai deixar muito em breve cegos. Depois de já não ouvirem ou falarem, vão deixar de poder ver, o sentido que os mantinha ligados ao mundo. Sabem que vão entrar num mundo escuro e isolado..Gentian Koçi, o realizador, não quer ir pela via do filme sentimental e de “caso da vida”. Apanha a tragédia deste caso e faz uma reflexão serena sobre o nosso lugar e destino na vida. Uma espécie de ensaio existencialista sobre uma ideia de amor fraternal. E nessa serenidade encontra momentos de puro cinema na sua manifestação mais suave. As sequências com os magistrais irmãos Morais, Rafael e Edgar (ambos tiveram de aprender durante meses linguagem gestual em albanês), têm uma cumplicidade emocional rara, tão perto de uma sombra de escuridão terrível, tão devastadoras pela sua verdade. .Filmar gémeos desta forma convoca uma complexidade íntima que se pode mesmo julgar nova. Koçi não força nada e o próprio trabalho dos atores portugueses é pleno de vigor mas sempre perto dessa autenticidade depurada. A forma como ambos interagem com amor com os seus corpos representa um outro manifesto do filme: a crença de que há uma unificação entre os dois. Trata-se de uma fusão, uma sinergia com uma carga tão cruel como lírica, criando-se um jogo de perceções subliminares com a própria identidade de cada irmão..E, já que se fala de jogo, importante sentir que o próprio realizador no seu slow cinema parece estar ciente do jogo dos aspetos mais frágeis da sua narrativa, ou como essa suposta fragilidade é a grande força da proposta, sobretudo na medida em que ao não sentirmos um certo peso dramático, a gravitas, estamos a ser desafiados por um outro peso, o do silêncio. É a tal proximidade da tragédia encenada com o tal real suave, sem efeitos nenhuns, apenas uma escoriação dos elementos do quotidiano: a lavagem da louça, um duche, a rotina da preparação de um café, etc..Por muitas voltas que se dê, Um Café e um Par de Sapatos é um pequeno filme que evoca a linguagem como programa existencialista. Moral da coisa: somos o que comunicamos. Fazer filmes sobre o elemento humano ainda tem de contar, especialmente quando as palavras são muito desnecessárias, aliás como os Depeche Mode já anunciavam. O truque ou trunfo está no olhar.