Perguntar não ofende?

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Poucas expressões revelam tão bem a sonsice lusa enquanto sentimento dominante da Raça. “Perguntar não ofende”, esconde-se a criança da crítica.“Perguntar não ofende”, legitima-se o vendedor de banha da cobra. “Perguntarnão ofende”, dizem também os grandes democratas de televisor nos seusarrebiques cesáreo-parolitos. Diz o avô, diz o bebé. Bem, posso dar-vos umadaquelas novidades tão extraordinárias que estará até fora da linha do tempo e de qualquer lógica deôntica: perguntar, sim, ofende, especialmente quando com isso se pretende a insídia de normalizar o medo, a mentira e até o simples mal, aquele de dentro de nós, que já nos dá tanto trabalho a conter nos baús da vergonha e a limpar quando alastra.

A armadilha é bem conhecida da história. Gritar o fogo que não existe contra o incendiário que se inventa, para o vir apagar e sair em ombros, de preferência com aquele fácies albo de inesperado e inafastável cumprimento do dever – também conhecido, lá está, como sonsice e tão patentemente colocado em efígie entre nós por personagens como D. Pedro IV, Salazar, Cavaco Silva ou José Castelo Branco. Basta juntar a isso a dose elevada de pobreza, de beatice, de alcoolismo, de falta de instrução, de inveja e de ressentimento, seja ele contra quem for, e está assegurado o alastrar desse fósforo. O fósforo. Esse calorzinho de conforto que se sentirá quando se quer mal a outro e nisso nos julgamos salvar. Esse travozinho de justiceiro do livro, aberta a torrente de almas ao seu juízo singelo, mas eterno, qual fardado arrumador de sala de cinema que se sente o Visconti, durante quinze minutos, cinco vezes por dia, amparado pela penumbra e pela irrelevância.

Assim está André Ventura, que apresentou aos eleitores uma proposta de referendo no programa do Chega e a recuperou agora, perguntando-se sobre quotas e autorizações de residência com o mesmo ímpeto dissimulado de cal e benzina com que um canal de televisão, aquele que o inventou, aliás, grita horror, vergonha, medo, drama, a cada segundo. Todos legitimados, claro, nessa cornucópia interminável de verdades e hidromel que são os interesses das pessoas, as opiniões das pessoas, os direitos das pessoas, as decisões das pessoas, o dinheiro das pessoas, tudo aquilo que permita encher a boca com pessoas, mesmo se não permite encher a boca a pessoas ou, em diversos momentos, simplesmente fechá-la.

Aqui creio ser devido também um momento de reconhecimento a António Costa. À falta de entretém, e com enorme vergonha alheia da minha parte, resolveu que o melhor para passar o tempo era participar ativamente no branqueamento do discurso e do enlamear constante da CMTV e passear-se numa furgoneta de banalidades que, não podendo horrorizar ou decapitar, não sendo dantesca nem infernal, é só assim, se calhar, o que sempre foi. Estamos bem, estamos. A caminho de nós próprios – como se poderia dizer numa qualquer contracapa de livro de autoajuda, sucesso de vendas, ou mesmo num glúteo, menos exitoso, mas mais torneado, de tanto subir e descer na escada rolante.

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