Do Tribunal Penal Internacional à construção da paz
A violência que tem estado a destruir a Faixa de Gaza e o agravamento do conflito entre israelitas e palestinianos empurraram a crise ucraniana para as margens da atenção internacional. Para nós, europeus, isto é preocupante. A nossa prioridade tem de ser a defesa da Ucrânia.
Reconhecemos, todavia, a gravidade da situação que tem Gaza como centro das preocupações, incluindo o impacto problemático que a resposta desmesurada de Israel tem sobre dimensões importantes da cena mundial. Por exemplo, sobre o papel da ONU, que, apesar de desempenhar funções humanitárias de grande relevância, Israel tem repetidamente procurado enxovalhar. Ou ainda, por permitir projetar uma imagem negativa sobre certos Estados que pertencem ao nosso espaço geopolítico e que são vistos pelo resto do mundo como apoiantes incondicionais das opções israelitas e alheios à sorte e ao futuro do povo da Palestina. Também por mostrar a incoerência da política americana: toda a retórica sobre a defesa dos valores universais e os direitos humanos é depressa esquecida quando a obrigação seria encontrar um equilíbrio entre Israel e a Palestina.
Aliás, surge aqui uma outra questão, igualmente relacionada com os EUA e que é vital para a Europa democrática: em caso de crise grave, podem os europeus contar a cem por cento com o apoio norte-americano?
Washington demorou seis meses, por questões de lana caprina interna, para aprovar um novo pacote de assistência à Ucrânia, pondo assim em risco a defesa legítima desse país e, na realidade, a nossa própria defesa. Pode haver confiança quando o principal parceiro da Aliança tem uma política interna incongruente e fragilizada? Dir-se-ia que Emmanuel Macron e outros têm razão quando lutam por uma Europa mais integrada e capaz de tratar da sua própria defesa. Algo que há muitos anos já Charles de Gaulle defendia. Os últimos tempos mostraram que os EUA pensam acima de tudo na proteção de Israel e numa rivalidade muito séria com a China. O resto é-lhes relativamente secundário.
Apesar de tudo, a crise de Gaza trouxe-nos esta semana um desenvolvimento indubitavelmente encorajador. Karim Khan, o britânico que é Procurador do Tribunal Penal Internacional, lembrou-nos verdades basilares: a primeira, que existem regras internacionais que devem ser respeitadas, em caso de conflito; a segunda, que a arquitetura institucional em que assentam as Nações Unidas não pode ser ignorada. E uma terceira, particularmente importante. O TPI não foi estabelecido apenas para julgar líderes de África, do Terceiro Mundo ou de ditaduras. É uma instituição que deve funcionar quando os aparelhos de justiça de um qualquer Estado, por muito poderoso ou desenvolvido que seja, se revelem incapazes de sancionar as personalidades nacionais que tenham cometido crimes de guerra ou contra a humanidade, de exterminação de civis, de tortura, de violência sexual num quadro de conflito, ou qualquer outro ato de crueldade.
Participei, no final da década de 90, em discussões que levaram ao Estatuto de Roma e à criação do TPI. E já nessa altura foi preciso frisar o caráter universal do Tribunal e combater certas posições eurocêntricas e de pretensa superioridade e isenção dos nossos sistemas de administração de justiça. Essa pretensão levou certos países a não aceitar ratificar o Estatuto de Roma, nem aceder ao TPI, em funções desde 2002.
Cabe agora ao coletivo de juízes do TPI reconhecer a seriedade com que Khan preparou os processos de acusação contra os três dirigentes do Hamas e, à parte, com acusações distintas, contra o primeiro-ministro e o ministro da defesa de Israel. Os factos que servem de fundamento aos requerimentos dos mandados de captura foram estudados à lupa e preparados por um vasto número de especialistas, a pedido do Procurador. As acusações retidas têm mérito suficiente.
É isso que os principais Estados europeus devem sublinhar. E aconselhar os líderes americanos a evitar qualquer tipo de retaliação contra Khan e a sua equipa. Se Washington enveredar por essa via estará a dar argumentos a Vladimir Putin e a todos os ditadores e criminosos de guerra que por aí andam de faca afiada.
O anúncio do reconhecimento do Estado da Palestina pela Espanha, Irlanda e Noruega foi igualmente um acontecimento importante da semana. São agora uma dúzia os membros da UE que reconhecem a Palestina como um Estado. Juntam-se assim a mais de 140 países que têm a mesma posição. Isto é importante para que a questão seja vista de modo amplo e não apenas como mais uma disputa entre o Sul Global e os ocidentais. É igualmente um passo em frente, no sentido da edificação de dois Estados vizinhos e prontos para cooperar.