Os agricultores têm efetuado vários protestos por toda a Europa, como este que aconteceu perto de Paris no final de janeiro.
Os agricultores têm efetuado vários protestos por toda a Europa, como este que aconteceu perto de Paris no final de janeiro.Andrea Mantovani/The New York Times

Agricultores revoltados estão a mudar a Europa

Protestos agrícolas estão a mudar não só o sistema alimentar da Europa, mas também a sua política, enquanto a extrema-direita sente uma oportunidade para prosperar entre a revolta
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Olhando da sua quinta de 265 hectares para as silhuetas das montanhas de Jura, ao longe, Jean-Michel Sibelle expôs os intrincados segredos do solo, do clima e da criação que fizeram das suas galinhas - patas azuis, penas brancas, crista vermelha, as cores de França - a realeza das aves domésticas.

O “poulet de Bresse” não é um frango vulgar. Foi reconhecido em 1957 com uma denominação de origem, semelhante à atribuída aos grandes vinhos da região de Bordéus. Passando de uma dieta de insetos dos prados e vermes para um puré de farinha de milho e leite nas suas últimas semanas de sedentarismo, esta venerada ave gaulesa adquire uma suculência muscular única. “O puré acrescenta um pouco de gordura e amolece os músculos formados nos campos para tornar a carne húmida e tenra”, explica Sibelle, com evidente satisfação.

Mas se este agricultor parece apaixonado pelas suas galinhas, também está esgotado pela dura realidade. Sibelle, 59 anos, está acabado. Espremido pelos regulamentos ambientais nacionais e da União Europeia, confrontado com o aumento dos custos e com a concorrência desregulada, não vê sentido em continuar a trabalhar 70 horas por semana.

Ele e a mulher, Maria, estão prestes a vender uma quinta que está na família há mais de um século. Nenhum dos seus três filhos quer assumir o controlo; juntaram-se a um êxodo constante que fez com que a percentagem da população francesa que se dedica à agricultura diminuísse constantemente ao longo do último século, para cerca de 2%. “Estamos sufocados pelas normas ao ponto de não conseguirmos continuar”, diz Jean-Michel Sibelle.

Nas explorações agrícolas europeias, a revolta está ao rubro. O descontentamento, que leva os agricultores a despedirem-se e a manifestarem-se, ameaça fazer mais do que mudar a forma como a Europa produz os seus alimentos. Agricultores revoltados estão a dificultar os objetivos climáticos. Estão a mudar a política antes das eleições para o Parlamento Europeu em junho. Estão a abalar a unidade europeia contra a Rússia, à medida que a guerra na Ucrânia aumenta os seus custos.

“É o fim do mundo contra o fim do mês”, disse numa entrevista Arnaud Rousseau, presidente da FNSEA, o maior sindicato de agricultores de França. “Não vale a pena falar de práticas agrícolas que ajudam a salvar o ambiente, se os agricultores não conseguirem ganhar a vida. A ecologia sem economia não faz sentido”.

A agitação encorajou uma extrema-direita que prospera com as queixas e abalou um sistema europeu forçado a fazer concessões. Nas últimas semanas, os agricultores bloquearam autoestradas e desceram às ruas das capitais europeias numa explosão perturbadora, ainda que desarticulada, contra aquilo a que chamam “desafios existenciais”. Num barracão cheio de patos que cria, Jean-Christophe Paquelet afirma: “Sim, juntei-me aos protestos porque estamos submersos em regras. A vida dos meus patos é curta, mas pelo menos eles não têm preocupações”.

Os desafios citados pelos agricultores incluem os requisitos da UE para reduzir a utilização de pesticidas e fertilizantes, agora parcialmente abandonados na sequência dos protestos. A decisão da Europa de abrir as portas a cereais e aves de capoeira ucranianos mais baratos, numa demonstração de solidariedade, agravou os problemas de concorrência num bloco onde os custos laborais já variavam muito. Ao mesmo tempo, a UE reduziu em muitos casos os subsídios aos agricultores, especialmente se estes não adotarem métodos mais respeitadores do ambiente.

Os agricultores alemães atacaram eventos do Partido Verde. Este mês, espalharam uma mancha de estrume numa autoestrada perto de Berlim que provocou o despiste de vários carros, ferindo gravemente cinco pessoas. Os agricultores espanhóis destruíram produtos marroquinos cultivados com mão-de-obra mais barata. Os agricultores polacos estão furiosos com o que consideram ser uma concorrência desleal da Ucrânia.

Os agricultores franceses, que manifestaram a sua fúria contra o Presidente Emmanuel Macron durante a sua recente visita à Feira Agrícola de Paris - onde os políticos dão regularmente palmadinhas no rabo dos touros para provar a sua boa-fé - dizem que dificilmente podem cavar uma vala, aparar uma sebe ou dar à luz um vitelo sem se confrontarem com um labirinto de requisitos regulamentares.

Fabrice Monnery, 50 anos, proprietário de uma exploração cerealífera de 430 hectares, está entre eles. O custo da sua irrigação eletrificada mais do que duplicou em 2023 e o custo dos fertilizantes triplicou, segundo ele, porque a guerra na Ucrânia aumentou os preços da energia.

“No início da guerra, em 2022, o nosso ministro da economia disse que íamos destruir a Rússia economicamente”, afirmou. “Bem, é a guerra da Rússia na Ucrânia que nos está a destruir.”

As quintas são mistificadas, mas mal compreendidas, diz. A alma de França é o seu “terroir”, o solo cujas características únicas são aprendidas ao longo dos séculos por aqueles que o cultivam, mas as pessoas que vivem nessa terra sagrada sentem-se abandonadas. A idade média dos agricultores é superior a 50 anos e muitos não conseguem encontrar um sucessor.

Muitas vezes, a imagem romantizada da quinta francesa - vacas a serem ordenhadas ao amanhecer, enquanto a neblina se ergue sobre as pastagens ondulantes - está muito longe da realidade.

Através da janela do escritório de Monnery, pode ver-se a central nuclear de Bugey a deitar vapor para o céu azul. O desenvolvimento urbano e as zonas industriais invadem as explorações agrícolas altamente mecanizadas que confinam com aldeias desertas onde as pequenas lojas foram esmagadas por hipermercados que oferecem carne e produtos importados mais baratos.

“Os licenciados das escolas de elite que dirigem este país não fazem ideia da vida nas quintas, nem sequer do que é um dia de trabalho”, acusa Monnery. “Estão empoleirados lá em cima, os sucessores da nossa família real, entre os quais Macron é o principal.”

“Ecologia punitiva”

A três meses das eleições para o Parlamento Europeu, os partidos de extrema-direita em ascensão em todo o continente aproveitam esta raiva. Apresentam-na como mais uma ilustração do confronto entre as elites arrogantes e o povo, os globalistas urbanos e os agricultores enraizados.

A sua mensagem é que o mundo rural é o guardião das tradições nacionais sob o ataque da modernidade, do politicamente correto e da imigração, além de um emaranhado de regras ambientais que, na  opinião desta extrema-direita, desafiam o senso comum. Estas mensagens ressoam junto dos eleitores que se sentem esquecidos.

Marine Le Pen, a líder do partido francês anti-imigração Reagrupamento Nacional, argumenta que o verdadeiro exílio “não é ser banido do seu país, mas viver nele e deixar de o reconhecer”. O seu jovem tenente, o carismático Jordan Bardella, 28 anos, que está a liderar a campanha eleitoral do partido, fala de “ecologia punitiva” enquanto percorre as zonas rurais.

Bardella encontra frequentemente um público recetivo. Vincent Chatellier, economista do Instituto Nacional da Agricultura, da Alimentação e do Ambiente, afirma que cerca de 18% dos agricultores franceses vivem abaixo do limiar oficial de pobreza e 25% estão em dificuldades.

Para o Reagrupamento Nacional, o “Acordo Verde” e a “Estratégia do Prado ao Prato” da UE, que têm como objetivo reduzir para metade o uso de pesticidas químicos e diminuir o uso de fertilizantes em 20% até 2030, como parte de um plano para ser neutro em carbono até 2050, são um ataque mal disfarçado à economia francesa. Em fevereiro, sob a pressão dos protestos dos agricultores, a UE reconheceu a polarização dos seus esforços, eliminando um projeto de lei antipesticida.

Uma sondagem recente do diário Le Monde atribuiu ao Reagrupamento Nacional de Le Pen 31% dos votos nas eleições europeias em França, bem à frente do partido Renascença, de Macron, com 18%. Os agricultores podem não contribuir diretamente com muitos votos, mas são figuras populares, ou mesmo veneradas, em França, e o seu descontentamento é registado por um amplo espetro de eleitores.

Na Alemanha, Stefan Hartung, membro do Die Heimat (Pátria), um partido neonazi, dirigiu-se a um protesto de agricultores em janeiro e denunciou os políticos de Bruxelas e Berlim que exercem controlo sobre as pessoas “impondo coisas como a ideologia do clima, a loucura do género e todos esses disparates”. Até à data, as manifestações dos agricultores alemães nunca tinham sido tão violentas como as recentes.

“É uma guerra entre os Verdes e os agricultores”, disse Pascal Bruckner, autor e comentador político em França. “Não se morde a mão que nos alimenta.”

Cyrielle Chatelain, uma deputada francesa que representa a região montanhosa de Isère e lidera um grupo de partidos ambientalistas no parlamento, contestou que era errado dizer que “todos os agricultores estão zangados com os Verdes”. “É menos a ideia de uma transição verde que os irrita”, disse numa entrevista, “do que a forma como é aplicada”.

O Pacto Ecológico estipula, por exemplo, que as sebes, habitat das aves nidificantes, não podem ser cortadas entre 15 de março e o fim de agosto. Mas em Isère, diz Chatelain, nenhuma ave nidificaria numa sebe a 15 de março, porque a sebe ainda está congelada.

Thierry Thenoz, 63 anos, criador de porcos em Lescheroux, no sudeste de França, diz que tinha replantado quilómetros de sebes na sua quinta de 700 hectares. “Mas se quiser fazer uma abertura de 25 pés na sebe para um portão e um caminho, tenho de negociar com os reguladores”.

Thenoz, que há muito tempo investiu numa unidade de metano para reciclar o estrume de porco como fertilizante e tornar a sua quinta autossustentável, também decidiu reformar-se e vender as suas ações na quinta. Os seus três filhos, segundo ele, não estão interessados.

Uma pedra angular oscila

Há mais de seis décadas que a Política Agrícola Comum, conhecida por PAC, é a pedra angular de uma Europa unida. Tal como nos Estados Unidos, onde o governo gasta milhares de milhões de euros por ano em subsídios agrícolas, sobretudo para explorações muito maiores do que na Europa Ocidental, um sector agrícola viável é visto como um interesse estratégico fundamental.

A política europeia manteve a abundância de alimentos, fixou determinados preços e ajudou a garantir que a França e a UE tivessem um grande excedente comercial de produtos agrícolas e alimentares, apesar de ter sido alvo de escrutínio por corrupção e favorecimento dos ricos. As grandes explorações agrícolas são as mais beneficiadas.

Os agricultores franceses que lideraram os protestos dos últimos meses contra o que consideram ser uma concorrência desleal por parte de países menos regulamentados beneficiaram enormemente dos subsídios da UE e da abertura dos mercados mundiais.
França tem recebido mais apoio financeiro anual de Bruxelas para os seus agricultores do que qualquer outro país, mais de 10 mil milhões de dólares (cerca de 9,2 mil milhões de euros) em 2022, diz o economista Chatellier. O sector agroalimentar francês teve um excedente de 3,5 mil milhões de euros com a China em 2022 e um excedente ainda maior com os Estados Unidos. 

Mas a política agrícola da Europa está repleta de problemas que contribuíram para a revolta dos agricultores. A expansão da UE introduziu uma maior concorrência interna. Os frangos baratos, criados com mão-de-obra muito mais barata na Polónia, inundaram o mercado francês. E estes problemas abundam num bloco que tem atualmente 27 membros.

As importações sem direitos aduaneiros da Ucrânia - onde a mão-de-obra é ainda mais barata - deram uma ideia preocupante do que significaria uma eventual adesão daquele país  à UE. Este mês, Bruxelas impôs restrições a algumas importações da Ucrânia, incluindo frango e açúcar.

A PAC criou uma “dependência doentia”, aponta Chatellier. Os agricultores dependem de políticos e funcionários, e não dos consumidores, para uma parte substancial dos seus rendimentos e sentem-se vulneráveis. Monnery diz que recebeu cerca de 35 mil euros, no ano passado, em ajudas da UE, um montante que tem vindo a diminuir de forma constante nos últimos anos.

Cada vez mais o dinheiro está ligado a uma série de regras em prol do ambiente. Um novo requisito da UE que exige que os agricultores deixem 4% das terras por cultivar para ajudar a “reflorestar” o continente provocou uma fúria especial - e foi suspenso por um ano.

Os governos estão a tentar conter os danos. Além de adiar algumas regras ambientais, França cancelou um aumento do imposto sobre o gasóleo para veículos agrícolas. E voltou-se contra o comércio livre, bloqueando um acordo com o Mercosul, um bloco sul-americano acusado pelos agricultores de concorrência desleal.

A questão é saber qual será o impacto destas concessões no ambiente e se se trata de mudanças cosméticas num sistema agrícola europeu que é visto como disfuncional e ultrapassado.

Um caminho difícil pela frente

Méryl Cruz Mermy e o marido, Benoît Merlo, licenciados em engenharia agrícola por uma prestigiada escola de Lyon, seguiram a direção oposta à da maioria dos jovens.
Nos últimos cinco anos, construíram uma quinta biológica de 700 hectares no leste de França, onde cultivam trigo, centeio, lentilhas, linho, girassóis e outras culturas, além de criarem gado. Endividaram-se para comprar e arrendar terras.

Para que o seu caminho conduza ao futuro da agricultura, é necessário facilitá-lo, afirmam. Merlo, 35 anos, vê uma “crise da civilização” no campo, onde a automatização significa menos trabalhadores, o trabalho é demasiado árduo para atrair a maioria dos jovens e o crédito para investimento é difícil de obter. Juntou-se a um protesto por extrema frustração. “Não contamos as horas que trabalhamos e esse trabalho não é respeitado pelo seu justo valor”, expõe.

São ambientalistas convictos, mas a crise no sector dos alimentos biológicos, conhecidos como “bio” em França, veio agravar as suas dificuldades. O sector biológico teve uma grande expansão durante alguns anos, mas os consumidores, em dificuldades, recusam agora os preços mais elevados. Vários grandes supermercados abandonaram mesmo os produtos biológicos.

“São necessárias novas normas para um planeta mais verde”, diz Cruz Mermy, 36 anos, “mas também são necessários preços justos e concorrência”.

Quer isso dizer que podem abandonar a vida na quinta? “Temos dois filhos, de 3 e 7 anos, por isso temos de ser otimistas”, disse. “Queremos que esta quinta seja uma âncora para eles. Olhamos para o futuro - alterações climáticas, guerra, energia limitada - e parece ameaçador, mas vamos passo a passo.”

Ao longo de um século, foi isso que a família de Jean-Michel e Maria Sibelle fez, criando aves de capoeira lendárias. Agora, com um sentimento de resignação, chegaram ao fim desse caminho. “Já não tenho a força física de outrora”, diz Sibelle. “Isso também é a natureza.”

“Sabe, eu sempre quis ser agricultor e tive a sorte de o conseguir”, acrescenta. “Não teria ido para uma fábrica para trabalhar 35 horas por semana, mesmo que trabalhasse o dobro com as minhas galinhas e capões.”

Mostra a sua “sala de prémios”, um barracão repleto de taças e troféus de prata, porcelana de Sèvres enviada por presidentes, distinções emolduradas e outras homenagens à grandeza das suas galinhas de Bresse, azuis, brancas e vermelhas, símbolos de uma França que perdura, mas apenas por pouco.

Este artigo foi publicado originalmente no The New York Times.
c. 2024 The New York Times CompanyThe New York Times da autoria de Roger Cohen e com contributo de Erika Solomon a partir de Berlim

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