BCE corta taxas, mas teme que salários e desastres ponham novos alívios em causa
Esta quinta-feira foi a primeira vez que a atual presidente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde, anunciou um corte de taxas de juro, mas este, no entanto, veio acompanhado de um tom outra vez menos esperançoso quanto ao rumo da inflação, que foi revista em alta entre 2024 e 2026. Mau sinal ou presságio quanto a novas reduções de juros no futuro, tendo Lagarde apontado o dedo, de novo, a possíveis exageros nos aumentos salariais e a riscos à espreita, como guerras e desastres climáticos.
Na liderança do BCE desde novembro de 2019, a antiga chefe do FMI, que vai a meio do seu mandato único de oito anos, só ainda teve oportunidade de agravar o custo do crédito da Zona Euro (de forma particularmente violenta desde meados de 2022 até agora).
E antes disso, o mandato foi marcado pela manutenção de juros em zero ou mesmo em terreno negativo por causa da crise pandémica.
As taxas de juro de referência da Zona Euro, cuja principal é agora, segundo o BCE, a taxa de depósito (taxa depo), foram reduzidas em 0,25 pontos percentuais, esta quinta-feira. Estava em 4%, o valor mais elevado de sempre (desde que foi criado o BCE, em 1998), aliviou para 3,75%. E olhando apenas para a taxa de depósito, é a sua primeira redução em quase cinco anos e a maior desde o pináculo da crise do euro, em meados de 2012.
Na conferência de imprensa, Lagarde quis deixar uma réstia de esperança a todos aqueles (famílias, empresas, políticos) que pedem que o alívio nos juros continue.
Mas também não se coibiu de deitar água fria sobre os que acham que está tudo mais ou menos adquirido em termos de alívio nos juros, apontando para riscos latentes que podem fazer descarrilar a inflação outra vez (apontou o dedo a novos aumentos salariais e à guerra, por exemplo), impedindo descidas de taxas ou limitando os cortes que pudesse vir a ocorrer.
Portanto, as reduções de taxas do BCE podem ou não vir a ser como os mercados ainda ontem estavam a descontar: mais dois cortes de 0,25 pontos este ano e mais três ou quatro no ano que vem, colocando a taxa de depósito do BCE nos 2,25% ou 2,5% no final de 2025.
Questionada sobre se o BCE entrou, esta quinta-feira, num ciclo de redução de taxas de juro ou se o corte anunciado é apenas pontual, a presidente da autoridade monetária respondeu: “Não posso confirmar se é um processo de redução que está em curso”, mas “há uma forte probabilidade de que sim”. Foi o trecho mais esperançoso.
Em todo caso, repetiu que qualquer decisão futura “dependerá dos dados” e será feita “reunião a reunião”. “Não nos comprometemos previamente com uma trajetória de taxas específica”, repetiu.
Segundo a economista francesa, “os riscos para o crescimento económico apresentam-se equilibrados no curto prazo, mas permanecem enviesados em sentido negativo no médio prazo” e “a guerra da Rússia contra a Ucrânia e o trágico conflito no Médio Oriente são importantes fontes de risco”.
Salários: uma dor de cabeça
Outro receio de Lagarde é que “o crescimento também pode ser menor, se os efeitos da política monetária [efeitos acumulados do aperto decidido no último ano e meio] se revelarem mais fortes do que o esperado”. E na inflação, que é a variável mais sensível para Frankfurt, o problema continua demasiado radicado nos salários.
A líder do BCE afirmou que “a inflação interna permanece alta” e que “os salários continuam a aumentar a um ritmo elevado para compensar a subida acentuada da inflação no passado”.
“Devido ao caráter faseado do processo de ajustamento salarial e ao importante papel dos pagamentos pontuais, é provável que os custos do trabalho oscilem no curto prazo, como observado no aumento, no primeiro trimestre, dos salários negociados”, insistiu.
Felizmente para o BCE, “indicadores prospetivos sinalizam uma moderação do crescimento dos salários no decurso do ano” e “os lucros estão a absorver parte da subida pronunciada dos custos unitários do trabalho, o que reduz os efeitos inflacionistas”.
Carsten Brzeski, economista-chefe do grupo financeiro holandês ING, observa que o BCE está a reduzir taxas “sem enfrentar qualquer tipo de recessão ou crise económica”. “Não fosse a comunicação desde fevereiro e os últimos dados macroeconómicos poderiam facilmente ter justificado uma nova pausa”. O perito do ING defende ainda que “o recente aumento dos salários e da inflação, bem como o facto de a economia estar a ganhar algum ímpeto, teriam sido fortes argumentos contra cortar taxas”.
Frederik Ducrozet, economista-chefe da gestora de fundos Pictet Wealth Management, está menos cético. Diz que o ciclo de descidas tem pernas para andar, mesmo que mais devagar. “Não nos deixemos distrair pela reação do mercado a curto prazo: o BCE sugere claramente que será necessária uma maior flexibilização se a desinflação continuar. Setembro deve permanecer em aberto para o próximo corte”, diz o analista.
A decisão desta quinta-feira reflete muita cautela, claro, mas Ducrozet considera que o ambiente é de tal forma incerto que da mesma forma que o BCE reviu em alta a inflação e o crescimento deste ano, “as novas projeções de setembro podem ser revistas em baixa”.
O gabinete de estudos do BPI recorda que “nos últimos meses aumentou a confiança do BCE de que a inflação seguirá uma trajetória descendente, em parte porque acredita que a sua capacidade de previsão também melhorou”.
“A trajetória da inflação não estará isenta de surpresas, nomeadamente a evolução dos salários”, mas “o mercado parece ter interpretado a decisão como um um corte tendencialmente restritivo”.
Ou seja, diz o grupo de peritos do BPI, a reação dos mercados ainda continua a refletir cortes de taxas até final de 2024, mas dá agora “uma menor probabilidade de um corte em julho, e não prevê totalmente mais dois cortes de taxas no resto do ano”. “A probabilidade de uma nova descida das taxas de juro em julho (que ainda está prevista para setembro) reduziu-se”, rematam os economistas do BPI.