Perdido por Cem (1972): memórias de um tempo que importa conhecer melhor.
Perdido por Cem (1972): memórias de um tempo que importa conhecer melhor.

António-Pedro Vasconcelos. Para nunca mais fazermos 20 anos

Da alegria criativa da Nova Vaga ao cruzamento do cinema com a produção televisiva, a obra de António-Pedro Vasconcelos apostou sempre na possibilidade de construir uma relação estável com os espectadores. O seu filme mais conhecido, O Lugar do Morto, é apenas um exemplo da pluralidade do seu trabalho.
Publicado a
Atualizado a

De António-Pedro Vasconcelos dir-se-á sempre que foi um criador que nunca desistiu de pensar a possibilidade de um cinema português que conseguisse conciliar a dimensão autoral com algum impacto comercial. Dito de outro modo: a expressão na primeira pessoa, inerente ao imaginário do Cinema Novo a que pertenceu, podia coexistir com a metódica consolidação de uma base industrial alicerçada numa relação estável e feliz com os espectadores.

Mais de meio século depois de Perdido por Cem (1972), a primeira longa-metragem de APV (sigla carinhosa pela qual era frequentemente identificado), importa não reduzir a multiplicidade do seu trabalho ao desencanto cinéfilo que manifestou em anos recentes — em 2018, na altura em que a Cinemateca lhe dedicou uma retrospectiva integral, dizia mesmo, em declarações ao Observador (entrevista de Bruno Horta, 14 junho), que “o cinema português hoje é irrelevante”. Aliás, esse desencanto encontrou uma expressão contundente, tão sincera quanto discutível, na sua avaliação do trabalho de Jean-Luc Godard: primeiro visto como uma referência incontornável da modernidade, mais tarde condenado como “coveiro” do cinema europeu.

Como outras personalidades do Cinema Novo português e, claro, da Nova Vaga francesa, também a relação de APV com os filmes não pode ser dissociada de uma iniciação, de uma só vez humana e ensaística, em que a divulgação surgiu a par do gosto da escrita. Começou, em finais da década de 1950, no Cineclube Universitário de Lisboa, conciliando a intervenção crítica (nos respectivos boletins) com a programação. Entre as muitas publicações em que escreveu, a revista Cinéfilo, ainda que de existência efémera (1973-74), justifica especial destaque, reflectindo uma dinâmica cultural em que se podem ler os ecos cruzados do pré e do pós-25 de Abril — APV foi chefe de redação, com outro cineasta, Fernando Lopes, a assumir as funções de director.

Documentários & ficções

Adeus, Até ao Meu Regresso (1974): retratos de Portugal pré-25 de Abril.

Perdido por Cem é, por várias razões, um título emblemático de toda uma época. Desde logo pelo retrato do jovem Artur (José Cunha), portador de uma tristeza com tanto de romântico como de político; depois, porque se trata de uma das produções do Centro Português de Cinema, entidade que, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, seria um motor de renovação, permitindo, por exemplo, que Manoel de Oliveira assinasse aquela que, na altura, era apenas a sua terceira longa-metragem (O Passado e o Presente, 1972) — APV foi um dos fundadores do CPC, em 1969, tendo sido o seu presidente em 1974-75.

Sem nunca ter desenvolvido uma obra de “temáticas sociais” (pelo menos no sentido em que, na mesma época, trabalhavam, por exemplo, os herdeiros do neo-realismo no interior da produção de Itália), APV não deixou de assinar filmes que, directa ou simbolicamente, espelham movimentos muito particulares da sociedade portuguesa. Semelhante atitude criativa não pode ser dissociada do gosto e da pertinência com que se exprimiu também na área documental. Recorde-se o exemplo modelar de 27 Minutos com Fernando Lopes Graça (1971) e também, logo após Perdido por Cem,  a produção televisiva Adeus, Até ao Meu Regresso (1974) construída a partir das “mensagens de Natal” de soldados que combateram na Guerra Colonial — a estreia, na RTP, ocorreu na véspera do Natal de 1974.

Oxalá (1981), porventura um dos menos conhecidos títulos da filmografia de APV, é também um dos que leva mais longe a lógica “sociológica”, a par da mágoa romanesca, do seu universo. Através do retrato de um português exilado em Paris (Manuel Baeta Neves), depois do 25 de Abril em permanente ziguezague com Lisboa, deparamos com alguns dos primeiros sinais de uma melancolia “pós-revolução” marcada por um intenso pessimismo moral — em anos recentes, Perdido Por Cem e Oxalá foram restaurados pela Cinemateca e editados em DVD pela Academia Portuguesa de Cinema.

Seguiu-se o filme que continua a ser para muitos espectadores a assinatura “oficial” de APV: O Lugar do Morto (1984), com Ana Zanatti e Pedro Oliveira. Herdeiro de uma certa via melodramática de Hollywood, cruzada com as ambivalências morais do cinema “noir”, nele se cristalizou a utopia autoral de APV: eis uma visão muito pessoal de um tempo de desagregação de valores que foi (continua a ser) um dos maiores sucessos de bilheteira do cinema feito em Portugal.

Tudo isto aconteceu em paralelo com a criação da VO Filmes, com APV associado a Paulo Branco, empresa produtora que, entre 1979 e 1982, deixou o seu nome ligado a títulos como Francisca (1981), de Manoel de Oliveira, Conversa Acabada (1981), de João Botelho ou, numa coprodução internacional, O Estado das Coisas (1982), de Wim Wenders.

Para APV, a vontade de internacionalização da produção teria a sua expressão mais relevante na realização daquele que, na altura, foi rotulado como o “mais caro filme português de sempre”: Aqui d’El Rei! (1992), um fresco histórico e, uma vez mais, melodramático sobre os tempos finais da monarquia, reunindo meios, actores e técnicos provenientes de Portugal, Espanha e França. Com uma nuance de concepção, hoje em dia normal, mas na altura pouco frequente: Aqui d’El Rei! foi lançado como longa-metragem de cinema e mini-série de televisão.

Ser ou não ser personagem


Aqui d'El Rei (1992): um objecto de cinema que foi também concebido como mini-série televisiva.

Aqui d’El Rei! não terá sido o sucesso esperado, ou melhor, a ambição de produção que o fez nascer não encontrou uma correspondência proporcional na sua existência comercial. Historicamente, vale a pena lembrar que, por essa altura, se assistia ao triunfo de outro tipo de indústria: a telenovela, com efeitos radicais (e, a meu ver, devastadores) na formação de novos públicos em tudo e por tudo estranhos ao prazer do cinema. Seja como for, a actividade de APV não pode ser separada de um contínuo processo de discussão do lugar das televisões no território global do audiovisual, nomeadamente no período (1990-93) em que assumiu as funções de coordenação do Secretariado Nacional para o Audiovisual.

Com altos e baixos, e a tenacidade de sempre, APV não desistiu de fazer filmes em que a actualidade de referências e personagens se mantinha ligada ao gosto de matrizes muito diversas de narrativa. São disso exemplos títulos como Jaime (1999), centrado na existência dramática de uma criança, Os Imortais (2003), evocando memórias da Guerra Colonial, ou Call Girl (2007), com Soraia Chaves, visão crua de uma decomposição de valores sociais indissociável do poder do dinheiro, outro grande sucesso comercial da sua filmografia.

Talvez se possa dizer que o “tema” que mais regularmente pontua e, num certo sentido, assombra a trajectória fílmica de APV é a iminência dessa desagregação das relações humanas, muitas vezes através da observação dos seus efeitos nas personagens mais jovens. Sinais disso mesmo surgiram ainda em títulos como Os Gatos Não Têm Vertigens (2014), com o diálogo de gerações vivido pelas personagens de João Jesus e Maria do Céu Guerra, ou até mesmo na evocação nostálgica que é Parque Mayer (2018).

Fará sentido, por isso, lembrar APV através das palavras de abertura, em off, de Perdido por Cem. São palavras do seu anti-herói Artur, ainda que lidas pelo próprio realizador: “Fecho os olhos, é como se os tivesse aberto no escuro. Vejo tudo o que me aconteceu, como se eu fosse espectador sonâmbulo da minha própria vida. Mas quando digo que foi isto que me aconteceu, o eu que o diz e o eu a quem tudo isto aconteceu seremos ainda a mesma pessoa? E porquê esta necessidade de me lembrar?”

No final da sua apresentação da personagem, APV apropria-se da lendária abertura de "Aden Arabie", o livro de Paul Nizan publicado em 1931. Dir-se-ia o enunciado de um projecto de vida, tão pontuado pela dúvida quando amante da liberdade: “Nessa altura eu era um adolescente taciturno lançado já nas aventuras da juventude e que se afastava da infância com uma espécie de ávida exaltação — eu tinha acabado de fazer 20 anos e não deixarei que ninguém diga que é a mais bela idade da nossa vida.”

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt