Reforma da Justiça. E agora, quem?

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Tenho de começar por um esclarecimento. Subscrevi, desde o início, o Manifesto pela Reforma da Justiça. Orgulho-me de o ter feito e sou grato àqueles e àquelas que decidiram lançar esta iniciativa.

Pelo seu impacto, pela diversidade (política e ideológica, profissional e também etária) dos seus subscritores, pela importância dos temas trazidos a debate, este é, seguramente, um dos documentos não-orgânicos mais relevantes da nossa democracia constitucional.

Não sendo nem jurista, nem especialista nesta área, foi a sua dimensão cívica e o seu contributo para o reforço da nossa democracia que me levou a subscrevê-lo.

Já muito foi dito e escrito sobre a reflexão e as propostas do Manifesto. Permitam-me que reforce quatro dimensões e adite uma nota final em jeito de desafio.

A construção do direito à privacidade será, para muitos, um dos ganhos mais notáveis da modernidade. É um progresso de poucos séculos e que está longe de ser realidade em muitas zonas do mundo. O Direito a violar e devassar a vida privada do comum ser humano foi uma espécie de lei natural dos poderes. Dos poderes religiosos, das várias monarquias, dos regimes totalitários e das ditaduras. Do senhor face ao servo.

Hoje nesta batalha, que persiste, novas e velhas ameaças crescem. Mas marcos há de relevância extraordinária: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Europeia dos Diretos Humanos (ambas dos meados do séc. XX) e, em Portugal a Constituição da República, dão dimensão central à defesa da privacidade.

É certo que este direito “inviolável” admite exceções em situação de criminalidade especialmente grave, em situações de terrorismo ou riscos para o Estado de Direito. Podemos aceitar essas exceções como recurso necessário face a um mal maior. Mas sempre em condições rigorosamente estabelecidas na lei e com o necessário escrutínio.

O que não podemos aceitar é que as escutas telefónicas se tenham transformado numa ferramenta judicial sem limites e sem controlo.

O que fere gravemente os Direitos Humanos é a possibilidade de colocar um “suspeito” sob escuta durante anos e anos, envolvendo centenas ou milhares de contactos. O recorde que se conhece publicamente vai nos quatro anos, mas parece que nada impede que se tenha ultrapassado esse limite com uma validação regular (cada três meses) por um juiz. O que não se pode compreender é o facto de esta “ferramenta” ser utilizada em Portugal bem mais do que em outros Estados europeus.

Em proximidade natural com as medidas fortemente intrusivas está a sua utilização na violação do “segredo de justiça”. Esta prática frequente bem organizada parece indiciar um comportamen- to ilegítimo.

Mas esta concertação entre fontes do Sistema Judicial e órgãos de comunicação especializados produz consequências gravíssimas.

Porque eventuais suspeitos são expostos publicamente sem que estejam reunidas as condições legais para tal acontecer.

Porque, para muitos, tal constitui uma pena prévia a qualquer julgamento com consequências potencialmente devastadoras para a vida do exposto e da sua família.
Porque é clara a utilização das fugas para obter efeitos políticos.

Pouco se conhece dos resultados das ocasionais intenções de abertura de inquéritos às fugas ao segredo de justiça. Mas é possível confiar nessas investigações quando existe, pelo menos, proximidade excessiva de quem investiga aos que agem ilegalmente na tal concertação comunicacional?

Poucos setores da nossa vida coletiva são tão sensíveis à gestão do tempo como a aplicação da Justiça. É necessário tempo para avaliar com rigor e rapidez para decidir com respeito pelos efeitos dessa decisão.

Então como aceitar que processos se arrastem por anos e anos, quantas vezes ultrapassando uma década?

Como aceitar que alguém que se divulgou como suspeito venha a ser constituído arguido vários anos depois?

E não, não me refiro apenas aos “megaprocessos” ou àqueles que envolvem pessoas com cargos políticos, o mesmo se passa com um número enorme de cidadãos que, pela gestão do tempo da Justiça, vivem anos de vidas suspensas.

Estes atropelos graves na aplicação da Justiça são ampliados pela introdução da dimensão espetáculo no funcionamento do Sistema Judicial.

Inaugurado pela entrada no Parlamento acompanhado pelas câmaras de televisão de um juiz para prender um deputado, o exercício da Justiça-espetáculo passou a fenómeno recorrente. Buscas televisionadas com comentadores em direto e longas horas de exposição mediática. Manchetes de jornais e televisões a partir de peças processuais em segredo de justiça, de tudo um pouco.

E que dizer da propensão de alguns responsáveis pela denominação “imaginativa” (não as refiro propositadamente) de processos de investigação, mais própria do marketing de Séries B de Hollywood ou então dos especialistas de comunicação de alguns dos nossos tabloides? 

O Manifesto gerou um relevante debate na sociedade portuguesa. Julgarão alguns que já entrámos numa outra fase: a da discussão das propostas de mudança. Talvez. Mas seria ingenuidade fatal considerar esgotada a fase de indignação e denúncia.

Principalmente quando assistimos à natureza da resposta ao Manifesto de alguns alinhamentos de atores do Sistema Judicial com os seus parceiros de alguma comunicação social.

Sumariamente são três as reações predominantes vindas desses lados:
   - a mentira - atribuindo ao Manifesto e aos seus subscritores a intenção de pôr em casa a separação de poderes e submeter o poder da Justiça e dos tribunais ao poder político, algo que o Manifesto contraria claramente;

   - a calúnia - atribuindo aos subscritores a função de meros servidores de corruptos e criminosos, como se o perfil dos mesmos não merecesse, na sua pluralidade, o respeito pelo seu inegável compromisso cívico;

   - o simulacro de embaraço - reconhecendo ao Manifesto, alguma razão e mérito, mas cuidando de lembrar que as correções podem ser feitas sem mexer nas raízes estruturais dos problemas.

A incapacidade de autorregeneração do modelo que possuímos é bem expresso pelas sugestões de que a gritante contradição entre posições do Ministério Público e dos tribunais em vários processos é devida à superior competência dos procuradores…

Passemos então ao debate sobre a mudança necessária.

Já o afirmei, faltam-me competências para propor o caminho dessas transformações.
Mas tenho duas convicções: a primeira - a de que este é um problema da nossa democracia -, a mudança é de natureza politica e tem de ser feita no terreno fulcral da lei e da sua aplicação; a segunda, é a de que, para as decisões que urgem, todo o debate importa, todos os contributos devem ser considerados.

Mas esta não é uma negociação sindical - se para aí resvalarmos, não acredito no resultado.

Temos lideranças recentes nos maiores partidos no Governo e na oposição. Mas tempo suficiente passou para que ambas passem de olhar para o brilho no espelho das suas táticas e, pelo menos nesta reforma, centrem o olhar na lente da História e da memória.

Não será fácil, já outros o não conseguiram. Mais uma razão para ser agora.

Terminarei com uma citação que há décadas me acompanha. É do padre Lacordaire, na França das revoluções do século XIX. Não sei da sua justeza nesta demanda, porque, hoje, nem sempre sabemos onde está o forte.

“Entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta.”

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