Os cromossomas de Imane

Há uma semana, a maioria nunca tinha ouvido falar da boxer argelina Imane Khelif. Nada que impeça a turba de ter certezas sobre ela, sobre se pode ou não competir na categoria feminina e até sobre genética humana. Um nadinha de calma, pode ser?
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Vão-me desculpar mas vou começar pelo fim. E o fim, do meu ponto de vista, é como se responde às perguntas “o que é uma mulher”; “o que é um homem”.

Até há uns dias, muitas das pessoas responderiam a isto “mulher é quem nasce com vulva e vagina” e “homem é quem nasce com pénis e testículos”, acrescentando, claro, “qual a dúvida?” Mas, como verifiquei, maravilhada, no Twitter, o caso Imane Khelif – a pugilista argelina de 25 anos cujo direito a competir como mulher foi posto em causa pela Associação Internacional de Boxe mais um coro variado que inclui o CDS (que chegou ao ponto de apresentar no parlamento um “voto de condenação”), uma deputada do Chega, o líder italiano de extrema-direita Matteo Salvini, Trump e, tristemente, a autora de Harry Potter, J. K. Rowling – mudou tudo. Agora, muitas daquelas pessoas que tinham a certeza de que a presença de um pénis ou uma vagina à nascença define, sem apelo nem agravo e para a eternidade, o género dos seres humanos (além, evidentemente, de gostarem ou não de cor-de-rosa), podem escrever frases como esta, inclusive com ponto de exclamação: “Nasceu com corpo de mulher mas é um homem”.

Isto porque a pugilista, admitem, terá vulva e vagina – portanto aquilo que designam de “corpo de mulher” – mas parece-lhes, vestida, um homem, e ouviram dizer que tem “cromossomas XY”. E, concluem, “se tem cromossomas XY é um homem”. Aliás houve quem afiançasse, sempre com a máxima certeza, que “tem testículos escondidos” e até quem ande a partilhar vídeos nos quais a argelina está a, alegadamente, “arrumar” os órgãos sexuais masculinos no calção (não estariam assim tão escondidos, portanto).

De onde vem toda esta maluqueira? Do facto de Imane ter sido, como outra boxer, a taiwanesa Lin Yu-ting, desqualificada em 2023, durante o campeonato do mundo da modalidade, pela citada Associação Internacional de Boxe (AIB). A AIB alegou ter descoberto, através de testes cujo tipo não especificou – invocando tratar-se de informação clínica, portanto privada – que ambas as atletas apresentavam “vantagens competitivas” face às sua adversárias. Mais tarde, o presidente da AIB mandou a privacidade às urtigas e certificou à agência noticiosa russa que ambas tinham cromossomas XY (associados normalmente a pessoas do sex masculino). Tendo as duas sido aceites na competição olímpica, o facto de Imane ter ganhado um combate com uma italiana em apenas 46 segundos porque esta desistiu, queixando-se de ter levado um murro brutal, desencadeou uma discussão global sobre o género “verdadeiro” da argelina e sobre se pode combater com mulheres.  

O que Imane Khelif – que, diga-se, já perdeu vários combates com pugilistas cujo género feminino não foi posto em causa – tem ou deixa de ter não vai decerto aventar-se neste texto: estou muito longe de poder ter certezas sobre o assunto e sinto-me bem acompanhada por Boris Van Der Vorst, o holandês que dirige a World Boxing, órgão dissidente da AIB (a qual fora “expulsa” dos Jogos Olímpicos antes desta trapalhada). Na quinta-feira, Vorst disse à Associated Press estar desgostoso com o desrespeito evidenciado na discussão pública em relação às duas atletas, considerando que a política de género da modalidade deve ser fixada por especialistas médicos, “porque o assunto é muito complexo. Precisamos de ter bons testes, não apenas testes de género, mas também testes médicos. Isto não é um assunto para alguém como eu ou você [referindo-se ao jornalista]”.

Precisamos sobretudo de calma: a presença do cromossoma Y, se é que é o caso das duas atletas, não se traduz forçosamente na identificação biológica masculina, como explica a página do Instituto de Investigação do Genoma Humano dos EUA. E, no contexto desportivo, o que está em causa, como sublinha a “política de género” adotada em 2022 pela Federação Internacional de Natação (World Aquatics), é a existência, ou não, de vantagem competitiva. Para este órgão, cujas normas neste campo foram seguidas por outras federações internacionais, como a do atletismo, só mulheres transgénero que fizeram a transição antes da puberdade (até aos 12 anos) podem competir nas provas femininas. Isto porque, se aceitarmos como premissa da separação da competição desportiva entre mulheres e homens o facto de nas modalidades que requerem mais força ou mais velocidade eles terem vantagem, não fará sentido admitir nas provas femininas mulheres que têm essa mesma vantagem competitiva porque se desenvolveram, na fase fulcral da puberdade, “como homens”.

Esta segunda-feira, Imane, que já garantiu pelo menos a medalha de bronze nos JO na sua categoria, dirigiu-se aos jornalistas  para dizer apenas, em árabe, “sou mulher”. Antes, o pai viera a público para certificar que a filha nasceu mulher, foi criada como mulher e sempre competiu como mulher.

Pode ser – sei lá – que Imane tenha algum tipo de característica biológica que lhe assegure uma vantagem competitiva desproporcionada face às adversárias (mesmo se isso não é óbvio na sua carreira como pugilista). Pode ser, e se assim for temos um problema no que respeita à sua inclusão na categoria feminina da modalidade. Mas não só será preciso prová-lo como isso não tem nada a ver com a sua natureza de mulher. Como escreveu Beauvoir, uma pessoa não nasce mulher, torna-se mulher. E esse tornarmo-nos mulheres é, disse-o tão bem em 2017 a escritora feminista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, “a maneira como o mundo nos trata”.

“O género é um problema não por causa do nosso aspeto ou como nos identificamos ou como nos sentimos mas por causa da forma como o mundo nos trata”, disse Chimamanda. É por esse motivo que, sejam quais forem os cromossomas de Imane, é uma mulher: toda a vida foi tratada como mulher.

A forma medonha, odienta, como o mundo a está a tratar, reduzindo-a ao seu "aspeto" e medindo-a pelo estereótipo do que "uma mulher deve parecer", exorcizando nela a necessidade tão pueril, tão ignara, de certificar – senão, o que seria? – que meninas e meninos são diferentes porque “foram desenhados diferentes”, usando-a sem piedade em mais uma guerra cultural, reitera isso mesmo: é mulher, sim. És mulher.

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