A morte de José Manuel Constantino, horas antes da cerimónia de encerramento dos Jogos Olímpicos Paris2024, é quase poética, tendo em conta que ele fez coincidir o sonho de uma vida com os melhores anos do olimpismo português, com a conquista de nove medalhas desde o Rio2016, primeiro de três Jogos na presidência (ver fotografias). Nascido em Santarém em 21 de maio de 1950, o pensador do desporto que inspirou gerações de atletas, liderava o Comité Olímpico de Portugal (COP) desde 2013..Apesar de debilitado ainda foi a Paris cumprir o dever da Missão. Esteve na Aldeia Olímpica com a comitiva e conseguiu ver a primeira das quatro medalhas portugueses (o bronze da judoca Patrícia Sampaio) nos melhores Jogos de sempre para as cores nacionais. .O respeito pelo atletas é, aliás, um exemplo do enorme legado que deixa e que é destacado por muitos deles, incluindo Telma Monteiro e Fernando Pimenta. “Lembro todas as vezes que me ligou a dar os parabéns, a perguntar como eu estava e me sentia, as vezes que nos visitou em estágios, as vezes que esteve ao nosso lado em conquistas importantes”, contou o canoísta, lamentando não lhe ter dado nova medalha Paris, depois do bronze em Tóquio2020 e da prata em Londres2012 (esta em dupla com Emanuel Silva e ainda antes do gestão de Constantino à frente do COP)..Pimenta promete por isso tentar ir a Los Angeles2028: “Não vou desistir, como você nos mostrou mesmo em momentos mais difíceis da sua saúde.”.“O presidente”, como lhe chamavam os atletas com reverência e simpatia, teria gostado de ver os portugueses aplaudir os medalhados de ouro Rui Oliveira e Iúri Leitão no regresso a Portugal. “Foi uma tristeza grande para todos nós. Uma pessoa que ajudou a conquistar tudo o que temos hoje. Espero que esteja feliz pela nossa conquista. Ainda conseguiu ver a nossa corrida e espero que esteja orgulhoso. Fizemos tudo o que esteve ao nosso alcance para homenageá-lo”, disse hoje, após uma receção apoteótica, Rui Oliveira, um dos dois últimos campeões olímpicos da era Constantino. .Prestígio e dinheiro para o COP.“Cidadão inquieto e desassossegado”, como o definiu o amigo e professor catedrático Jorge Olímpio Bento, governou os destinos da entidade máxima do desporto português com a “ética”, que “ impregnava também a sua atitude e comportamento e o seu pensamento”. .Considerado um dos grandes pensadores sobre o fenómeno do Desporto em Portugal, sendo mesmo reconhecido com os títulos Honoris Causa pelas Universidades do Porto (2016) e de Lisboa (2023), fazia muitas vezes alertas sobre a literacia motora e desportiva (ou a falta dela). Afinal foi o único licenciado em Educação Física (1975) a liderar o Comité Olímpico e insistia que o aumento do número de praticantes “é um assunto de elevado grau de complexidade”, marcado por desafios como a demografia e “o défice de dados, informação e investigação atualizada”..Travou essa luta até ao fim, segundo o líder da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP), Manuel de Brito: “Se não há uma subida do número de atletas é impossível ter mais resultados de bom nível. Por outro lado, não se pode só olhar para a prática desportiva usando o conceito vago de atividade física. O José Manuel Constantino falava muito disso. O desporto é uma atividade concreta, estruturada e de um enorme valor social.”.Já o antecessor no cargo, Vicente Moura, reconheceu-lhe “o excelente trabalho” e o “contributo” para o prestígio do Comité, mas fundamentalmente para o desporto português. Segundo Vicente Moura, “é uma ironia” do destino que ele tenha partido num dia em que o país deveria estar satisfeitos por, pela primeira vez em 26 presenças (desde Estocolmo1912), celebrar uma medalha de ouro, duas de prata e uma de bronze: “ José Manuel Constantino foi um dos responsáveis por esse êxito.”.E se Portugal teve o maior apoio de verbas de sempre para preparar Paris2024, muito o deve a ele: “Conseguiu a credibilidade necessária para obter da parte dos Governos um maior apoio financeiro. Depois, apurou bastante bem os projetos olímpicos que se iniciaram no meu tempo, passando a ser geridos com maior rigor e competência por parte das federações, dos treinadores e do COP. Além disso, deixou uma imagem de prestígio, pois era intelectualmente bastante avançado em termos desportivos e não só.”.Usar de diplomacia não era sinónimo de ser inativo e muitas vezes criticou o Estado por não ter uma política cultural desportiva. Mérito também reconhecido pelo presidente da Assembleia da República. “Durante o seu mandato, o desporto beneficiou de avanços significativos e a sua morte representa uma enorme perda para o desporto em Portugal”, destacou José Pedro Aguiar-Branco, lembrando que a sua liderança e paixão “deixam uma marca indelével no panorama desportivo em Portugal”..Elevação intelectual.Com passagens pela Federação Portuguesa de Halterofilismo e pelo Algés e Dafundo, fez o caminho até ao topo de forma sustentada. Além de ter presidido ao Comité Olímpico de Portugal durante 11 anos, liderou antes a Confederação do Desporto de Portugal e o Instituto do Desporto de Portugal (antecedor do Instituto Português do Desporto e Juventude)..A administração pública e a esfera autárquica também marcaram o seu percurso. Foi “pioneiro” na introdução do desporto nas autarquias, a começar pela de Oeiras. Isso não foi esquecido por Filipe Santana Dias, presidente da Câmara de Rio Maior, que tem um Centro de Alto Rendimento: “Grande homem do desporto nacional conquistou tudo o que havia para conquistar, deixando um legado de excelência em todos os cargos que desempenhou com brio, elevação e seriedade. Foi um grande amigo do concelho de Rio Maior.”.A “elevação intelectual” destacada por muitos deve ser considerada uma forma de legado para quem vier a seguir. Eleito como sucessor de Vicente Moura em março de 2013, estava a finalizar o terceiro e último mandato no COP (irá a votos antes do Natal). Quem vier a seguir terá o caminho facilitado, mas uma obra difícil de igualar..O velório é terça-feira, entre as 10.30 e as 23.00, na sede do COP, em Lisboa, na Travessa da Memória. Quarta-feira terá lugar um serviço religioso às 10.15 e às 11.00 sairá o cortejo fúnebre em direção a Gondomar, onde será sepultado..Com Lusa.isaura almeida@dn.pt