Um soneto de Camões: Pôr a malta a ler!!
No artigo de há quinze dias escrevi sobre Camões e acentuei a importância de, nestes 500 anos, ser a leitura dos seus poemas a melhor homenagem. Mas nesse mesmo artigo constatei a dificuldade que, sobretudo no contexto escolar, a poesia de Camões, como a poesia em geral, coloca a quem ensina e a quem aprende. Hoje as dificuldades de interpretação avolumam-se ao longo do percurso de qualquer aluno porque: 1º) o digital impede o contacto vivo e interessado com o objecto livro e até com o papel; 2º) não há, nos programas entre o 5º e o 12º anos, uma compreensão cultural e literária dos textos a escolher para as diferentes idades (insiste-se nos mesmos autores - Sophia, Sophia, Sophia - ou misturam-se alhos com bugalhos: textos de humoristas com frases desta ou daquela estrela televisiva que comenta, de uma penada, um conteúdo literário; notícias de jornal ao lado dum poema, mas sem pertinência, nem critério e, pelo meio dos manuais escolares, muita bonecada, muito desenho, muitos elementos que distraem); 3º) não há hábitos de leitura verdadeiramente desafiante, patrocinando-se o que é fácil, o que passa por estar na moda, o que, por ser moda, é necessariamente bom; 4º) a reboque do facilitismo nas aprendizagens nenhum aluno, salvo excepções raríssimas, lê poesia e lê ensaio sobre o que é a poesia para melhor a compreender; 5º) o desconhecimento da história cultural portuguesa, bem como da história cultural europeia é impressionante e, sem essa bagagem prévia, a leitura literária torna-se um muro difícil de transpor.
As razões para que hoje os alunos sejam, no fundo, analfabetos, são muitas, mas não é difícil continuar a somar razões para termos chegado até aqui. Que dizer da formação de professores? Que dizer da ausência de leituras por parte de muitos que leccionam? Que dizer do quotidiano burocrático que seca a imaginação, a energia vital e a vontade de muitos que gostariam de fazer das suas aulas momentos de encontro com os textos? Que dizer, pois, se “quem não sabe arte não na estima?”
Serve esta introdução ao nosso Directo à Leitura de hoje porque, na sequência do que escrevi no dia 27 de Janeiro, me parece que é urgente fazer, a propósito dos 500 anos de Camões, a pedagogia e a didáctica possíveis. Como ler Camões e transmiti-lo aos jovens?
Talvez devêssemos começar por definir bem o nosso objecto de estudo: não só Camões, mas a poesia. E começar por recordar uma definição de poesia de David Mourão-Ferreira: “A poesia é sobretudo linguagem: linguagem animada pela emoção, intensificada pela emoção e transfigurada pela metáfora.” Onde se lê “poesia”, na verdade, o autor de A Secreta Viagem (1950) escreve “Literatura”.
Os alunos, os leitores, na generalidade, decerto compreenderão o que expomos (escrevemos no quadro). Ao substituir esse termo por “poesia” mais não faço que recordar que a poesia é um conceito mais antigo que literatura e que, portanto, um texto literário tem sempre, mesmo quando narrativo ou dramático, uma carga poética. Seja essa realidade uma abstracção (o amor, o tempo, a memória), seja essa realidade um facto concreto (a guerra, a doença, a desigualdade), no poema as palavras são o móbil do labor a que chamamos literatura. Quem lê um poema tem, pois, de atentar nas associações, nas correspondências, nas obscuras ou óbvias relações que o poema tem com o contexto de produção e com a tradição literária em que se inscreve. Temos de estar atentos à poesia como poiesis: trabalho.
Posto isto, eliminem-se os três preconceitos de que a poesia sempre sofre nas salas de aula: 1º) um poema não é resultado de qualquer inspiração; 2º) também não é fruto de qualquer emoção exasperada; 3º) muito menos devemos ler um poema ou a obra de um poeta a partir da sua biografia. Repudiem-se por impressionistas estas três “superstições literárias” e concentremo-nos na linguagem do poema. Convidemos quem nos ouve (lê) a pôr os olhos num soneto de Camões.
Eis o problema: o soneto “Transforma-se o amador na cousa amada”. Aparece em muitos manuais escolares. Está presente na Universidade em qualquer curso sobre poesia do Quinhentismo. Pode estar até em programas sobre poesia moderna ou contemporânea. Camões, nesse desafiante soneto, comprova quanto a poesia é linguagem animada pela emoção, intensificada pelo ritmo e transfigurada pela metáfora. Vejamos: parte-se da tratadística amorosa do século XVI: o que é o amor, qual a sua origem, quais os seus efeitos. Tudo isso tinha sido já problematizado pela literatura cortesã (veja-se o Cancioneiro Geral, de 1516) e Camões, como tantos outros poetas, prolonga essa tradição especulativa. O léxico filosófico equilibra-se perfeitamente com o “engenho e arte” dos 14 versos. Um subtexto podemos lembrar: a canção de Guido Cavalcanti Donna me prega, base do tratado amoroso de Marsílio Ficino, De Amore, o seu Livro VII. Camões não se limita a parafrasear a tratadística. O tema, na verdade, não é o amor, mas a questão do desejo entendido como falta e, portanto, “desejo de alcançar” a “cousa amada”.
Se na primeira quadra se diz “Transforma-se o amador na cousa amada / por virtude do muito imaginar”, não é claro que a lei do desejo se eclipse, porque o poeta tem em si o objecto que imagina. O corpo não tem já que desejar, podendo mesmo descansar, “pois consigo tal alma está li[g]ada”. Para Aristóteles a matéria é uma falta, porque na origem não tem forma. Por isso, se a cousa amada é “linda e pura semideia” e está “no pensamento como ideia”, eis porque ela se conforma com a alma do poeta. Ele e ela são um só, estão ligados. A tese é exposta no terceto final: se o poeta é feito dum “vivo e puro amor” (amor sem desejo físico, por isso puro), ele continuará procurando a ideia da amada, tal “como a matéria simples busca a forma”.
Todo o soneto se estrutura em função de uma cadência rítmica: “desejar”, (v.3), “desejada” (v.4), “deseja” (v.6) e “busca” (v.14). O poema problematiza os dois planos da experiência do amor: o plano carnal e o ideal. O poeta, porque imagina, já não tem de obedecer à lei do desejo no plano físico (1ª quadra), mas desejará, só que de outra maneira. O sujeito amante está conformado - tem a mesma forma - que a ideia, que permanece no seu pensamento. Sem ser conduzido pela paixão carnal, o eu lança-se na perseguição da forma, porque ele é agora “matéria simples”.
Se nas quadras o poema só pode entender-se à luz do pensamento platónico, nos tercetos é o aristotelismo que nos abre o sentido do texto. A mulher é o acidente inerente ao seu sujeito (“acidente” é matéria para Aristóteles) e a falta agora é de outra natureza: espiritual - o sujeito amante aspira a ligar-se à “cousa amada” para se realizar. Por isso se escreve: “E este vivo e puro Amor de que sou feito / Como a matéria simples busca a forma”.
Buscar a forma, eis uma das teses deste magistral e enigmático poema. A Forma: curioso anagrama que, lendo-se de trás para a frente é a palavra “amor” com aquele [f], o [pH] da química, da atracção dos corpos: a matéria busca uma forma para existir. Circular, o verbo “buscar” reenvia para “desejar”.
Conhecendo a ensaística sobre Camões, recuperemos o que escreveu Maurizio Perugi sobre este soneto. Dê-se a ler esse inteligente ensaio a quem lê connosco o poema. Os 14 versos organizam-se em função de entimemas, de silogismos incompletos. Como entimemas e não silogismos, Camões omite uma das premissas: a premissa A é o verso “Transforma-se o amador na cousa amada” por causa “de muito imaginar”. Consequência: o corpo não tem já de desejar porque já tem em si “a parte desejada”. No 2º entimema, o raciocínio é este: a alma do amante está transformada na da amada. Consequência: o corpo pode descansar. O enigma deste soneto permanece, pois nos tercetos: a falta, se já não é carnal, é espiritual e não, no fim de contas, uma tese absoluta quanto ao processo que leva o amador a transformar-se na cousa amada.
A questão, em bom rigor, vem a ser só esta: por que razão não podem os estudantes gostar de poesia, lê-la, conhecer editoras - pequenas, grandes - e resgatar do esquecimento Luís de Camões? “Por virtude do muito imaginar” poderiam eles absorver em si a poesia - as artes, a literatura - como “linda e pura semideia”. Entenda-se: a poesia como acontecimento que, sendo feito de palavras, é como um corpo que podemos tocar, que nos seduz, que, na música e nas imagens que transporta consigo nos transporta, afinal, para zonas da nossa imaginação que, hoje, esta civilização desmaterializada e obcecada com o dinheiro quer anular, diminuir. Que seremos, nestes 500 anos de Camões, sem a imaginação e o desejo que dão força ao pensamento?
*Professor, poeta e crítico literário