O que é ensinar? O que faz um bom professor?
"Não há receita. Nunca consegui fazer igual. Todos os anos é um ano novo."
Cecília Cunha, 60 anos, é professora de História no secundário. Ensina há 36 anos. Durante muito tempo teve "picos de febre" na primeira aula, aquela em que se apresentava aos alunos. "Era tiro e queda, de cada vez que tinha uma turma nova. Uma vez levei uma pastilha elástica na boca e derreteu."
Era muito estranho e contraditório, comenta. O medo, a excitação, o stress. A responsabilidade e a beleza. "O mais bonito é a parte de conhecê-los. É algo que extravasa o pânico da transmissão do conhecimento." E a primeira vez de todas? "Inesquecível. Entra-se, estranha-se, entranha-se. Foi logo uma paixão muito grande."
É preciso, explica, "conhecer, perceber um a um. Há miúdos que se fecham muito, criam um casulo. Há uns que falam muito e tentamos dar espaço aos mais calados." E como se faz com os tímidos, os alheados, os desconfiados? "Não podem expor-se aos outros. Tem de se tentar chamá-los fora da sala de aula. Podemos ir ter com eles na aula mas não criar uma discriminação pela presença excessiva."
E com a indisciplina, como se lida? "Não tenho um modelo profundamente padronizado - já aconteceu ter alunos marginais, sinalizados como larápios, já me aconteceu um entrar na sala a bater uma bola de basquete sem olhar para mim, e eu puxar-lhe pela camisola e dizer: "Olha para mim"."
O toque e a reação ao toque são, diz, muito reveladores. "Quando toco um miúdo e ele reage bem, sei que vai ser fácil chegar a ele. Mas se se fecha, foge, ou é agressivo, vai ser um caso complicado. Vou sempre diagnosticando." E já lhe passaram pela sala de aula casos gravíssimos. "Estive em situações de tentativa de homicídio, agressões a colegas meus. Tive de acompanhar casos como o de um miúdo que tentou matar uma colega que só tinha notas máximas, mandando um cigarro acesso para um blusão de penas e outro que tentou matar um colega mandando, do último andar da escola, um azulejo partido contra a cabeça dele." Mas, conclui, não sentiu que tivesse falhado muitas vezes.
E evolução, coisas que mudou ao longo do tempo? Reflete. "No início era mais ríspida e rígida. Foram-me fazendo críticas, diziam que era muito exigente." Mudou, acha. E foi alterando o modo de dar as aulas à medida que as possibilidades técnicas evoluíram. "O professor está sempre a reinventar. Não entra na rotina. Temos de ver quais as prioridades que temos numa determinada turma. Uma pode ser mais recetiva a um documentário, por exemplo, mas isso só por si não cola o conhecimento." Suspira. "Hoje em dia é muito os manuais. Há uma tendência de os alunos se desligarem dos autores e papaguearem aquilo que vem no manual como verdade. Temos de tentar ver outras perspetivas - é a minha grande luta de há vários anos para cá. Mas os pais acham mais útil direcionar os filhos para as estratégias que deem resultado nos exames."
Helena Amaral, 59 anos, encontra-os muito mais cedo, no primeiro ciclo, que leciona há quase quatro décadas. Mas tem o mesmo sentimento que Cecília. "De cada vez que apanho uma turma, aquelas 26 novas carinhas, mete muito medo - é uma situação muito exigente. Nesse primeiro dia olho para mim da cabeça aos pés com todos os pormenores. Porque eles são pessoas, eu também. Pessoas mais pequeninas, mas pessoas, e a relação entre pessoas é complicada. Temos de entrar em diálogo, criar empatia."
É, prossegue, "um confronto, um processo interessante mas assustador, porque sou responsável por que eles aprendam e são muito pequenos, muito frágeis. E muitas vezes eles vêm na defensiva porque alguém lhes disse "agora é que vais ver, na escola, vão mostrar-te como é". E isso, essa ideia que eles trazem, interfere na construção da aprendizagem."
A ideia de que é preciso dar espaço às crianças, de as ouvir e perceber para criar uma relação que permita a educação, em vez de as encarar como um sorvedouro passivo de informação que se "descarrega" faz parte das teorias do pedagogo português João dos Santos (1913-1987). Este prescrevia que era preciso, primeiro, "compreender o que nas suas histórias ou nas suas fantasias ela [a criança] entende da vida e do mundo". Ou seja, perceber quem ali está, como fazem Cecília Cunha e Helena Amaral.
Autor da célebre questão "se não sabe, por que é que pergunta?", João dos Santos começou por ser professor de educação física, tendo depois tirado o curso de medicina, especializando-se como pedopsiquiatra. Considerando que as crianças aprendiam a andar, a falar e a ler nos olhos dos outros, e que "sabem ler nas pessoas e na natureza antes de chegar à escola", começou por ter desta uma visão castradora, a de "uma instituição que visaria corrigir nas crianças o vício impertinente" dessa leitura. Viria depois a amenizar essa opinião, dizendo-a "destinada a estimular nas crianças o gosto pelo saber que adquiriram no contacto com a natureza, as pessoas e as coisas, e a ensinar a utilização dos métodos de registo do conhecimento." Mesmo se, em 1980, escrevia: "Ninguém ensina ninguém." E "não é necessário reprimir as crianças, é só necessário que as ajudem a reprimir-se. Para que elas sejam inteligentes e criativas".
Mas como se passa destas ideias para a prática de uma sala de aulas (mesmo que só o nome "sala de aulas" possa ser, nesta perspetiva, discutível)?
Sérgio Niza, 78 anos, trabalhou com João dos Santos. Colaboraram no Centro Infantil Helen Keller, uma escola lisboeta para crianças cegas e amblíopes, depois de Sérgio, que desde o início da sua experiência como professor, nos anos 1960, quis encontrar alternativas ao modelo tradicional, ter sido expulso do ensino público pelo regime de Salazar. "Ainda tentei ensinar no Colégio Moderno [da família Soares] mas a PIDE não deixou." No centro Helen Keller não o incomodaram, crê, talvez por ali trabalhar só com crianças deficientes.
É a partir desse trabalho que é criado, em 1965/66, o Movimento da Escola Moderna em Portugal, de que Niza é um dos fundadores. O objetivo é de que as crianças "se apropriem o mais cedo possível dos métodos de produzir conhecimento. Usamos para isso as formas do trabalho intelectual, não o método didático; pomos as crianças desde cedo a fazer os seus próprios projetos." Isto, frisa, desde o pré-escolar. Porque "as crianças não apreciam ser crianças, aspiram a ser adultos e sentem-se traídas por as infantilizarmos .Exploramos como processo e métodos de trabalho os processos e métodos de trabalho que a sociedade usa para se desenvolver."
Por exemplo, ensinar a escrever: "As crianças contam-nos coisas da vida delas - do quotidiano - nós registamos coisas que nos dizem e elas podem copiar para elas, adotando a nossa forma de escrever, transformando os grafismos dos desenhos num código fonético que nasce de um discurso. Eles vão descobrindo esse código e vamos construindo pequenos livros, usando esses livros. Depois podemos saltar para o computador, onde eles veem as letras e vamos dando o nome às letras, colecionando essas coisas. Privilegiamos a escrita, porque a escrita contém a leitura, e na escola tradicional para-se a vontade de escrever; os alunos são avaliados pela escrita mas não são estimulados a escrever. O nosso caminho é construir autores e depois confrontá-los com outros autores."
Mas, claro, é preciso dar a "matéria" do currículo oficial. E assim é, assegura Sérgio Niza. E os resultados? "Conseguimos que mais alunos tenham sucesso porque o insucesso do aluno é o insucesso da turma, eles trabalham em conjunto, cooperam. Há provas de que se os alunos trabalharem em conjunto progridem mais. As nossas turmas vivem numa participação democrática ativa."
Ao contrário do dispositivo da escola "normal", que considera "antidemocrático", com o professor todo-poderoso e afirmando o seu poder e o seu saber - ele é que sabe tudo - não deixando os outros aprenderem a saber. Têm de esperar que ele despeje o seu saber." Faz uma pausa, pergunta: "Não é estranho que na escola em geral quem faça perguntas é o professor? Quando devia ser o professor a estimular as perguntas dos alunos. Seria muito mais útil e inteligente."
São pouco mais de mil os professores que em Portugal, informa Sérgio Niza, seguem o método defendido pelo MEM e quase todos, assegura, "muito jovens; estamos na terceira geração". Estão por todo o país, "espalhados por núcleos regionais e todos os anos fazemos um congresso no qual se relata o trabalho que se fez com os alunos." A maioria estão integrados em escolas públicas. "Para funcionar dentro da escola é preciso muita força e segurança para sem ofender os colegas desenvolver o método que seguimos. É reconhecido esse direito, mas alguns diretores não gostam. Pedimos para deixar fazer e eles veem se resulta ou não. Mas nunca tivemos ninguém a dizer-nos que temos maus resultados."
A atual presidente do Conselho Nacional de Educação, Maria Emília Brederode dos Santos, reconhece ter havido, na escola portuguesa, "uma evolução, uma certa tomada de consciência de que há muitas maneiras de aprender, e que o modelo clássico unidirecional, com uma metodologia constante, expositiva, uma matéria para dar, um manual para apoiar, um exame para verificar, não é o único possível. Há muitos anos que esse modelo é contestado mas ultimamente há uma maior consciência de que há outras formas."
Cita, claro, o MEM e a sua pedagogia alternativa. "Há elementos que têm vindo a ser cada vez mais questionados - a organização da escola em turmas, anos, salas de aula, em disciplinas. Cada aluno tem diferentes maneiras de aprender, e por exemplo na Escola da Ponte [em Vila das Aves, Santo Tirso, fundada em 1976], que segue o método da escola moderna, existem grupos diferentes, onde os alunos se inserem conforme estão a aprender."
Confessando não ser "fanática de nada", e gostar "de uma boa aula, de estar ali a ouvir", lembra-se de um inquérito que fez, ainda nos anos 1970, a alunos do final do 1º, 2º e 3º ciclo, e cujo resultado publicou na revista O Tempo e o Modo. "Era sobre as características que diferentes grupos - pais, alunos -- gostariam que a escola e o professor tivessem. De um modo geral os miúdos diziam que gostavam dos professores e que estes os ajudavam. E que gostavam de eles valorizassem o lado positivo dos alunos em vez de andar à procura do que não sabem. E que tivessem sentido de humor. Houve uma miúda de sete anos que disse "gostava que a escola não fosse o lobo mau que nos persegue e aborrece.""
Licenciada em Ciências da Educação e com um mestrado em Análise Social da Educação pela Boston University,
Maria Emília Brederode dos Santos interpreta a questão paradoxal de João do Santos como "o professor a dizer ao aluno que ele tem de pensar antes de perguntar". Ou seja, a pergunta como chave da aprendizagem, como preconiza Sérgio Niza.
Mas não poderá ser também o aluno a dizer ao professor "estás-me a perguntar uma coisa que na verdade não sabes, porque estás a papaguear coisas que te são e me são exteriores e desinteressantes"?
Como a personagem de Les Enfants (As Crianças), filme de Marguerite Duras de 1985, o aluno - que tem sete anos mas é interpretado por um adulto -- pode recusar "que só lhe ensinem o que não sabe", ou seja, aquilo que nada lhe diz. Maria Emília Brederode dos Santos assente: "Pois. Há muitas coisas que o professor também não sabe. É interessante que os alunos se deem conta disso, que haja essa dimensão, a de que se descobrem coisas juntos. Quando são muito novos isso pode ser dessecurizante, mas a partir dos sete, oito anos podem admitir que os adultos também não sabem, que não sabem tudo. Há uma intranquilidade, mas aprender é isso."
Às vezes o encontro entre professor e aluno surge exatamente assim, por o professor admitir o que não sabe, colocando-se ao nível do aluno na necessidade de perceber, para o fazer sentir que não está só na perplexidade, na ignorância.
"Era um aluno do 7º ano, que estava sempre distraído, a olhar para o rio, à janela, ausente", conta Lurdes Figueiral, 59, professora de matemática. "Um daqueles alunos de quem a gente se lembra toda a vida." Foi, quando esta docente do secundário, presidente da Associação dos Professores de Matemática, esteve a dar aulas no Alentejo, numa escola com contrato de associação. "Um dia um professor mostrou-me um desenho feito por ele, que era o Natal no fundo do mar. Fiquei impressionada, aquilo era de uma riqueza... Era filho de um pescador. Chamei-o ao quadro e ele disse: "Não percebo nada disto." Respondi: "E eu não percebo nada de pesca." Perguntei-lhe o que se pescava ali, e ele com a conversa acabou por conseguir fazer o problema. E pronto, fez o 9º ano. Um tempo mais tarde encontrei-o e disse-me que tinha ido fazer um curso profissional e conseguira sempre bons resultados a matemática."
Descer do púlpito, do pedestal, do estrado onde a arquitetura da escola clássica colocou o mestre. Dizer: posso aprender com vocês, não somos assim tão diferentes. Somos da mesma espécie, a que pergunta. A que sabe que não sabe.