O que a censura cortou: da perna à mostra à palavra revolução

Manuel Mozos é investigador do ANIM - Arquivo Nacional da Imagem em Movimento, onde tem dedicado grande parte do seu tempo a investigar a censura no cinema a partir dos bocados de películas que foram cortados dos filmes.
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É um trabalho quase de detetive. Olhar para uma pequena tira de película uns quantos fotogramas apenas, e descobrir a que filme pertenceu e porque é que foi cortada. Manuel Mozos é um dos detetives de serviço no ANIM - Arquivo Nacional da Imagem em Movimento, onde trabalha desde 2002. Mas já antes disso o realizador de Xavier e de Ramiro, que foi também montador e é ator ocasional, tinha posto a sua paixão pela história do cinema à prova quando, nos 25 anos do 25 de Abril, foi desafiado a fazer um filme a partir da coleção de "cortes da censura" da Cinemateca Portuguesa: "Eram caixas com rolinhos de películas, as partes que eram cortadas pela censura. Era preciso identificar aquele material todo com aproximadamente três horas e meia de cortes."

Como identificar todos aqueles bocadinhos de filmes? Imagine-se: uma cena em que aparece um rabo de uma senhora. Só isso. Ou um grupo de coristas de pernas à mostra. Ou um miúdo que está a ser torturado. Ou um homem com um machado na cabeça. A maneira mais óbvia de identificar um filme é através dos atores. Mas Mozos também já conseguiu identificar uma cena através do décor - umas cascatas, situadas em Itália, e que apareciam noutros filmes da época. Todas as pistas são importantes. Ao fim destes anos, ainda há mistérios por resolver. Mas Manuel Mozos orgulha-se de já ter muitos "casos encerrados".

O arquivo do nosso cinema

O ANIM, que existe desde 1996, é um dos braços da Cinemateca. Neste arquivo construído no meio do campo, perto de Bucelas, há filmes de todas as épocas e de diferentes proveniências. Vêm aqui parar, antes de mais, através da entrega obrigatória de uma cópia de todos os filmes apoiados pelo Instituto de Cinema (antes dele, havia o Fundo Nacional de Cinema). Além disso, explica Mozos, os negativos guardavam-se no laboratório onde era feita a tiragem, em Portugal sobretudo na Tóbis mas também na Odisseia ou noutros. Quando os laboratórios desapareceram, os negativos foram para o ANIM. Depois, existem produtores, realizadores e distribuidores que entregam os materiais que têm em armazém. E há ainda espólios particulares, que são doados, depositados ou comprados pela Cinemateca. Ainda aparecem, de vez em quando, caixas com latas de filmes em sótãos esquecidos ou em casas que vão ser remodeladas.

Mozos está no setor de identificação. "Todos os filmes que dão entrada no ANIM, ou que existem na coleção mas que ainda não foram trabalhados, passam por este setor", explica. "São visionados na mesa de montagem e tiramos toda a informação possível do filme, seja o título (que pode estar na lata ou não) sejam as características, se é a cores ou a preto e branco, que tipo de janela tem, que tipo de som, em que estado é que o material está, se está em degradação ou impecável, se tem rasgões, se tem colagens, deterioração das perfurações, etc." Depois, há uma outra fase da identificação que é comparar todos os materiais de um filme (o negativo e as várias cópias) para perceber quais os melhores para usar na preservação ou no restauro.

Os filmes são cuidadosamente recuperados usando as técnicas mais avançadas, para poderem ser exibidos ao público. Mas esse trabalho de restauro já não é função de Manuel Mozos. O que ele gosta mesmo é do trabalho de detetive. Juntamente com Margarida Sousa, Mozos tem estado a ver todos os "cortes da censura" - que neste momento já não são só três horas e meia mas quase 30 horas de material entretanto encontrado - não só para identificar o filme a que pertencem mas também para, com a ajuda dos processos que estão na Torre do Tombo, saber a história desses cortes e a história das várias versões do filme.

O que cortar?

"Todos os filme iam à censura. No caso dos filmes portugueses, a censura começava logo no guião e depois na montagem. No caso dos estrangeiros, a censura também era obrigatória. As comissões de censura iam visioná-los e podiam entrar em três categorias: ou passam sem problemas, ou são proibidos, ou passam mas com cortes", explica o realizador.
E depois há várias maneiras de cortar: por exemplo, em Persona, de Bergman, falado em sueco, os censores optaram por tirar as legendas em cerca de cinco minutos de filme.

"As diretrizes do que se deve censurar existem mas são um bocadinho vagas." Há filmes que estão automaticamente proibidos, como os soviéticos e os dos países de Leste, ou os indianos (depois da independência). Há filmes que são censurados nos anos 1940 e 1950 (como O Pinóquio, da Disney) mas que quando são repostos nos anos 1960 já passam na sua inversão integral).

Há cortes que são exigidos pelas comissões de censura mas também há cortes que são feitos pelos distribuidores, por motivos comerciais, para que os filmes tenham uma classificação etária mais abrangente ou para ficarem mais curtos. No pós-Segunda Guerra Mundial era frequente cortarem-se as senhoras de biquíni, que mostram a perna, ou com um decote mas arrojado. Ou a fumar. "Se forem mulheres muito emancipadas ou que têm um ascendente sobre os homens, também cortam." A partir do momento em que começam os movimentos independentistas, a censura recai mais sobre as questões da guerra, movimentos de libertação, racismo. Há cenas que foram cortadas porque as personagens usam a palavra revolução ou democracia.

No caso dos filmes portugueses, quase sempre o trabalho de investigação é mais completo: existe um guião, as várias cópias de montagem, às vezes até pessoas que participaram no filme, como atores ou técnicos, e que podem dar informações relevantes. É o que está a acontecer agora com o filme Lotação Esgotada, de Manuel Guimarães: na cópia que existe falta uma cena que está no guião. Porque foi cortada essa cena? Foi a censura? Foi o realizador? "É o que estamos a tentar perceber."

O ideal é conseguir repor a versão tal como o realizador imaginou. Ou seja: remontar o filme incluindo os excertos encontrados. Isso já foi feito, por exemplo, com Maria Papoila, de Leitão de Barros, Pássaros de Asas Cortadas, de Artur Ramos, e com o filme Verdes Anos, de Paulo Rocha, a que faltava uma cena em que Júlio (Rui Gomes) vai a uma casa de prostitutas perto do Cais do Sodré. "Não se vê nada, eles falam com as raparigas e depois entram por uma porta, mas foi cortada pela censura."

Perceber todas estas histórias na história de um filme e conseguir mostrar ao público uma versão completa é algo que deixa Manuel Mozos satisfeito. Entre os maiores mistérios por resolver: dois excertos com dois atores muito conhecidos: Kirk Doulgas e Vittorio Grassmann. "Estes têm-me intrigado muito, porque sabemos todos os filmes que eles fizeram, há qualquer coisa que nos está a falhar." Mas não vão desistir.

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