De olhos fechados, sem óculos, de língua? Como foi o primeiro beijo deles
Jorge Palma, músico, 68 anos
Foi em maio de 1969. A filha de um amigo do meu pai começou a despertar-me o interesse, até porque, por via dos nossos pais, conhecemo-nos e começámos a encontrar-nos. O meu pai tinha um apartamento na Costa de Caparica e a Gisela, era esse o nome da menina, passava lá às vezes os dias.
Uma bela noite, calculo eu final de maio, depois de jantar, fomos dar uma volta pela praia. Havia um restaurante que, por volta da meia-noite, já estava fechadíssimo e tinha umas mesas cá fora, em cima da areia. Não estava a dar muita importância e também não tinha jeito nenhum para a conquista, era tímido, não abordava as meninas, enfim, era o fim da adolescência e eu armava-me um bocado em franganote. Mas a verdade... há um momento em que, naquela noite, estava lua - não sei se lua cheia -, estávamos os dois sozinhos e de facto houve uma atração muito grande. Demos um grande beijo.
Ela já tinha feito 15 anos e eu ainda não tinha feito 19. Aquele beijo teve continuação, íamos a uma discoteca que funcionava à tarde. Nessa noite foi só beijos e abraços e festinhas. Antes disso, pensava sempre que na primeira oportunidade lhe dava um grande beijo. Eu já tinha beijocado, mas aquele beijo língua com língua foi de facto magnífico, daqueles que não se esquece. A partir daí ficámos namorados, no fim do verão. A Gisela ficou a minha namorada e quando decidi ir para a Dinamarca para fugir à guerra perguntei-lhe se ela queria ir, e ela disse que sim. Fomos juntos para Copenhaga. E acabámos por casar-nos lá, eu tinha asilo político e ela tinha visto de turista, para poder ficar teve de se casar comigo. Foi assim um casamento cómico. Depois, já casados, a seguir ao 25 de Abril, voltámos para Portugal. Em 1977 as coisas já não estavam a correr bem e, pronto, cada um seguiu a sua vida.
Júlio Isidro, apresentador de televisão, 74 anos
Tenho algumas dificuldades em lembrar-me do primeiro beijo. Não por terem sido muitos, mas porque creio que estará viva a menina a quem dei o primeiro beijo. Ela tinha olhos azuis, umas sabrinas muito giras azuis-escuras e usava uma saia já a tender para a minissaia. Era minha vizinha, e acho que lhe dei um beijo, mas não foi daqueles à cinema. Foi na sequência de uma espécie de agradecimento de uma prenda que lhe dei por ocasião do aniversário dela. Ela deu-me um beijinho e eu fiz pontaria ao lado para ver se acertava em cheio. Teríamos 16 anos ou coisa assim.
Via-a há uns anos numa pastelaria, mas fui tão tímido como há 50 anos. O beijo não foi planeado porque eu era incapaz de planear isto. Foi uma tentativa desesperada de acertar no alvo, fazendo de conta que errava. Eu até era atrasado no tempo, 16 anos hoje é uma idade já com muita experiência. No cinema quando havia cenas de beijos a rapaziada levantava-se aos gritos, eu gritava também. E havia assobios e tudo, porque era uma coisa que a gente via mas não praticava, pelo menos a maior parte dos meus amigos.
Acho que mesmo antes do primeiro beijo a coisa que me provocou mais calafrios foi dar a mão e, sobretudo, entrelaçar os dedos. Era um sinal de que havia uma ligação. Antes de se dar um beijo era preciso pedir namoro, se ela aceitasse então podia acontecer um beijo, tinha de ser uma coisa assim séria. O que me lembro é que, neste caso, houve uma cumplicidade. Ela se calhar também deixou ficar a cara quieta e eu mexi a minha, mas nem nunca chegamos a namorar, porque a mãe dela era uma câmara de vigilância, como todas as mães na altura. Depois eu via-a sistematicamente sair de casa para ir para o colégio. Ia à janela e por entre as cortinas via-a deslizar com as suas sabrinas azuis-escuras. Foi um beijo sem querer, o que é mais saboroso. A carga de prazer aumenta na razão direta da impossibilidade. Era uma coisa tão impossível que quando aconteceu fui quase eletrocutado.
Marta Crawford, sexóloga, 49 anos
Acho que os meus primeiros beijos foram naquele jogo de bate-pé. Tínhamos um grupinho e contornávamos as regras, só dizíamos quantos beijos. Acho que nem nunca soube como se joga ao bate-pé. Chegávamos a ponto de dizer "quantos queres? 20, 30?", e estávamos ali a dar beijinhos, ganhava quem dava mais. Não eram beijos propriamente apaixonados, eram beijos de jogo e ficávamos muito contentes quando era um rapazinho assim que enchia as medidas. Isto foram os primeiros beijos.
Achava o beijo uma coisa muito importante e tive várias paixões na adolescência. E há uma delas que a certa altura é correspondida - com um beijo. Mas era uma pessoa que supostamente também estava numa outra relação. Portanto, aquilo foi um beijo um bocado... deu para sonhar, mas foi um beijo... quer dizer...
Eu era adolescente, devia estar no 10º ano, na António Arroio. Tinha uma grande paixão pelo rapaz, na altura era flautista, e dei-lhe um beijo numa festa de Carnaval em que estávamos todos muito alegres, por razões carnavalescas e não sei se copos à mistura ou não. O beijo foi muito significativo para mim, porque eu estava muito apaixonada, mas pelos vistos, do outro lado... Enfim, a pessoa não sei se estaria ou não apaixonada, sei que tinha uma namorada, portanto aquele beijo foi um beijo supostamente indevido. Não me lembro se sabia que ela tinha namorada, mas o beijo foi dado assim num momento de festa, em que se calhar os filtros estavam mais em baixo, havia ali algum descontrolo, e aconteceu. Esse beijo se calhar até teve mais significado pelo proibido, porque nem me lembro exatamente se foi na escola ou no caminho para o metro. Essa história, naquela altura, não teve desenvolvimentos, mas uns anos mais tarde teve. Ficou lá a fermentar. Aquele beijo foi uma semente para o futuro.
Filipa Martins, escritora, 36 anos
A história do meu primeiro beijo foi, antes de mais, uma história de antecipação e teste. Ele tinha chegado à nossa escola, vindo do Porto, a meio do primeiro período, filho de pais separados. Exotismo bastante: cavaleiro vindo de longe, de uma cidade debruçada sobre outro rio, com sotaque de forasteiro que nas consoantes lhe vincava os cantos da boca de uma forma que arrancava suspiros às meninas. Acrescia que o contexto familiar, anunciado pela professora como nódoa de vinho no linho, o cobria do mistério das almas desarranjadas, candidatas a uma recuperação pelo amor.
O toque dos lábios, que a Disney nos disse durante décadas ser possuidor dos maiores poderes curativos, tornou-se um imperativo quase ético e humanitário. O facto de ter uma palidez vitoriana e cachos louros tornava este gesto altruísta numa antecipação hedonista. A almofada foi, noite após noite, a minha pista de testes, enterrando os lábios na fronha com hesitações da língua.
Porém, como nas histórias tradicionais, havia que esperar pelo sinal do forasteiro, e os olhares trocados diziam que este não tardaria. Chegou no formato de folha A5 quadriculada e dobrada em quatro, trespassada de carteira em carteira. O beijo, todavia, vinha coxo de vogais. Numa caligrafia nodosa, sugeriu um bejo atrás do pavilhão no intervalo do almoço, elidindo o i.
Compareci no local combinado a mascar uma pastilha de mentol que me livrou do hálito a sopa de nabiças. Estacámos frente a frente, com os corpos próximos, espiados pela assistência camuflada em risos. Foi na inclinação do seu rosto de olhos vivos e abertos que compreendi que nenhuma vogal pode ser sacrificada na troca de saliva. Recuei e deixei-o suspenso na humilhante rejeição. Verdade seja dita que as vogais já fizeram mais por mim do que qualquer beijo reparador. Esta é a história do meu primeiro beijo que nunca chegou a ser.