Ninguém nos preparara para isto: uma espécie de experiência imersiva e radical nas nossas próprias casas. A solo ou com famílias de dimensão variável, às vezes com um hóspede a quem se alugou um quarto, durante dias inteiros, sem data marcada para o fim. No futuro, escrever-se-ão romances e guiões de filmes sobre isto, mas também tratados de arquitetura..Quem o diz é Gonçalo Byrne (Alcobaça, 1941), nome grande da arquitetura contemporânea (prémio Valmor em 2000), com obras tão importantes como a torre de controlo do tráfego marítimo do porto de Lisboa, o edifício da sede do governo da província de Vlaams-Brabant em Lovaina (Bélgica), o quarteirão da Império no Chiado ou o Museu Nacional Machado de Castro em Coimbra, entre muitos projetos que vão desde o planeamento urbano ao desenho de espaço público e de edifícios, desenvolvimento e sustentabilidade..Candidato à direção da Ordem dos Arquitetos (as eleições estão previstas para 15 de maio), Byrne mantém, apesar da vastidão da sua obra, uma noção integrada da disciplina a que se dedica há mais de meio século, relacionando-a sempre com as exigências da sociedade e com o modo nem sempre justo como o mercado se apropria do direito essencial à habitação. Sabe que um arquiteto nunca termina realmente uma casa porque esta interpela constantemente quem nela vive, mas também quem a desenhou. Porque, como no poema de Ruy Belo, estas mudas testemunhas da vida "parecem estáveis mas são tão frágeis as pobres casas"..Esta experiência de confinamento, que ninguém esperava, está a levar milhões de pessoas em todo o mundo a permanecer em casa durante dias e semanas a fio. Em média, as casas portuguesas têm condições para uma vivência tão intensa? Há de tudo, claro está. As condições são muito diferentes para quem vive no centro histórico ou nas periferias, por exemplo. Mas se falarmos de Lisboa ou Porto, a maior parte das pessoas vivem em apartamentos por si adquiridos. Nas casas habitadas nos últimos dez anos, eu diria que a qualidade da construção, do ponto de vista do conforto, em geral, é fraca. Os isolamentos não são muito bons, o que se torna particularmente sensível quando as pessoas passam o dia todo em casa. O que é particularmente importante nesta experiência de confinamento em casa é termos a noção de que isto é algo totalmente novo, surpreendente, que, em muitos casos, leva as pessoas a descobrirem coisas que desconheciam em casas onde vivem há muito tempo..Para o bem e para o mal... Sem dúvida. Essa é uma primeira reflexão que me parece interessante: Esta imersão quase obrigatória numa casa vai levar muita gente a descobrir que certos aspetos não funcionam tão bem como elas pensaram durante anos. Se calhar vão descobrir que não têm tanto conforto como pensavam ou vão perceber que o espaço está demasiado cheio, o que lhes corta a liberdade de movimentos..Esta experiência quase imersiva, como diz, pode colocar novos problemas aos arquitetos? Pode. Penso, aliás, que esta é uma altura extraordinária para que se volte a questionar os autores das casas - os arquitetos - sobre aspetos que precisam de ser repensados ou mesmo de intervenções mais ou menos importantes, que podem ir desde a melhoria das condições de isolamento ou da adaptação do número de divisões em função da evolução da família. Dou-lhe um exemplo: Um casal teve dois ou três filhos e organizou a sua casa de acordo com esta realidade. Com os filhos adultos, a viverem fora, este espaço pode ser redimensionado e tornar-se mais confortável. Estes são temas de arquitetura. Outro aspeto que me parece importante é o facto de este confinamento num tempo longo (porque, na verdade, ninguém sabe quanto tempo vai durar) voltar a colocar o problema da carência de casas acessíveis no mercado de arrendamento. Como se sabe, nos últimos anos, o arrendamento de curta duração, para alojamento turístico sobretudo, inflacionou muito os preços, nomeadamente em Lisboa e Porto. As câmaras municipais começam a despertar para este problema, que é, na verdade, muito sério. Sei que em Lisboa está a ser desenvolvido um programa nesse sentido, primeiro com três mil fogos e depois claramente mais, mas esta tem de ser a aposta. Digo isto porquê? Porque, perante estas dificuldades, há muitos jovens, muitos deles já com as suas famílias, que continuam a viver em casa dos pais. O que se torna particularmente difícil em época de pandemia, em que cada pessoa é simultaneamente um potencial transmissor e uma potencial vítima da doença. Agora imagine que numa destas famílias há uma pessoa doente, a quem os serviços de saúde indicam que deve ficar em casa em quarentena. Isto obriga a que a casa tenha, pelo menos, um quarto e uma casa de banho que permitam ao doente estar isolado do resto da família. Ora, isto nem sempre acontece. Muito provavelmente, a maior parte das casas da nossa classe média não estão preparadas para esta densidade anómala..Como é que se começou a evoluir para esta situação? Com o boom turístico? Não, muito antes. Depois dos anos imediatamente posteriores ao 25 de Abril, em que houve alguns programas de apoio à habitação como o SAAL [Serviço de Apoio Ambulatório Local] ou por iniciativa das cooperativas, a construção de casas passou a ser dominada pelos construtores privados e gerida pelos bancos, sobretudo a partir do final dos anos 1980. O Estado demitiu-se de fazer aquilo que sempre tinha feito, que era construir e disponibilizar casas de renda acessível quer às classes mais necessitadas, com a habitação social, quer à própria classe média, como, aliás, o fazia desde o Estado Novo. Estamos agora a pagar o preço desses anos todos em que o promotor público se demitiu do seu papel. Não encontramos uma demissão tão flagrante no resto da Europa. Espanha, por exemplo, continuou com programas de construção por iniciativa dos governos autonómicos. Não só para jovens, mas também para a população imigrante. A cidade de Lisboa tem programas próprios de arrendamento no âmbito do património municipal, é verdade, mas não tem acrescentado oferta. A pandemia veio colocar estas questões de uma forma muito crua e brusca. Nós estamos a falar da classe média, mas imagine estes problemas entre as classes mais necessitadas ou nos sem-abrigo, que estão completamente expostos..O confinamento também veio colocar o problema da privacidade. Com famílias inteiras dentro de casa ao mesmo tempo, alguns em teletrabalho, ou em aulas pela internet, nem sempre é possível evitar o conflito. As casas não alargam nem encolhem conforme as nossas circunstâncias. Mas as famílias crescem ou diminuem. Isto volta a colocar-nos o problema dos jovens, com as suas famílias constituídas, que são obrigados a permanecer em casa dos pais. Não há intimidade ou privacidade possível. E quem diz isto pode também falar de um avô, de um outro familiar ou de um hóspede (como sabe há pessoas da classe média que alugam quartos para obterem mais um rendimento). As tensões são grandes quando todos partilham o mesmo espaço durante 24 horas. A pandemia, se quiser, é um catalisador de situações com alguma anomalia..Também em arquitetura há ilações para tirar da pandemia? Muitas mesmo. A primeira é esta: não há arquitetura se não houver um promotor e é fundamental que o Estado cumpra esse papel, o que não invalida que a iniciativa privada também possa investir no mercado da habitação de custo acessível (em Lisboa está a fazê-lo, pouco a pouco). Mas em Inglaterra isso acontece há muitos anos. Em Portugal ocorreu um pouco ainda antes do 25 de Abril e depois foi abandonado. Agora, está um pouco a tentar retomar-se, vamos ver como corre. A outra ilação que devemos retirar de tudo isto é a necessidade de requalificação, melhoria, adaptação das casas existentes. Uma vez mais se coloca a questão de quem serão os promotores. A meu ver, podem ser os proprietários de um prédio inteiro, um condomínio, ou mesmo o dono de um só andar. E aí deve interpelar o arquiteto. Enquanto é habitada uma casa nunca está realmente terminada..---------------------------------------------------------------------------.Admirado ou incompreendido Raul Lino (1879-1974) foi um dos mais importantes arquitetos portugueses do século XX. Projetou mais de 700 obras - entre as quais a Casa do Cipreste, em Sintra, e o Teatro Tivoli, em Lisboa - e fez inúmeras reflexões sobre a casa portuguesa. Foi um defensor da tradição na arquitetura em oposição ao modernismo.A Casa de Santa Maria em Cascais, (na foto) projetada em 1902 por Raul Lino para uma família é hoje um museu. O arquiteto publicou várias obras sobre as "casas simples" portuguesas.