Crime ou esperteza? Só cábulas

Os papelinhos preenchidos com letra pequena, as mnemónicas inscritas em tampos de mesa ou os colegas permissivos estão fora de moda. Hoje as cábulas são digitais e as medidas para as controlar apertadas. Burrice ou engenho?
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António Lobo Antunes escreve pequeno. A letra ficou famosa logo depois da Guerra Colonial, nos seus anos como psiquiatra no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. A palavra demorou um pouco mais. Mas a história da letra miudinha, a que haveria de tornar as suas palavras conhecidas, contou-a no documentário Escrever, Escrever, Viver. "Os meus pais queriam que eu estudasse, eu em vez de estudar escrevia. Escrevia em papéis pequenos com o livro de Geografia, Matemática ou Português ao lado e quando ouvia passos no corredor punha o livro em cima para, se entrassem, pensarem que estava a estudar. Aquela letra pequena era a que usava para as cábulas no liceu", contou no documentário transmitido na RTP em 2009.

Lobo Antunes copiou no Liceu Camões, é assumido. E a probabilidade de ter copiado também na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa é elevada. A assunção chega com base num estudo de 2017, feito pela Universidade de Guelph, no Ontário, que garantia que quanto mais inteligentes os alunos, maior a probabilidade de se valerem das cábulas na hora dos exames.

Astuto e ardiloso, crédulo, envergonhado, mas também manhoso, são, segundo o dicionário da Porto Editora, sinónimos de cábula, característica atribuída a mandriões e a burros. Mas sobre a burrice dos cábulas já as opiniões se dividem, ou não tivesse sido, ainda nesta semana, notícia a entrada da obra de Lobo Antunes na exclusiva Pléiade, coleção da editora francesa Gallimard que Marcelo Rebelo de Sousa descreveu como "um verdadeiro panteão onde estão pouquíssimos (Vargas Llosa, Kundera) autores vivos e, até agora, apenas um autor português (Fernando Pessoa)".

Depois há histórias e medidas de controlo a cábulas que nos obrigam a pensar que há mais além dos papéis escritos em letra miúda, escondidos na roupa ou colados nas costas das calculadoras, das mnemónicas gravadas em tampos de mesa ou mesmo, como contava o Telegraph em 2016, os trabalhos em dupla - papelinho lançado janela fora com a pergunta, papelinho devolvido janela dentro por um cúmplice e resposta certa em exame de Medicina na Índia. A era é tecnológica e nesta altura já os professores têm mais do que controlar além dos colegas faladores ou dos olhares de soslaio por cima de ombros alheios. Telemóveis, telefones e calculadoras com capacidades mais ou menos obscuras - em Portugal, as gráficas são proibidas nos exames nacionais - podem funcionar para bem mais do que os examinadores esperam. E se a ameaça é grande, a resposta chega com igual força.

Em 1994, foi notícia a Academia Naval norte-americana, onde 134 estudantes foram acusados de ter acedido previamente ao exame de Engenharia Eletrónica - 24 acabaram expulsos, 62 sofreram sanções por violação ao código de honra. Em 2007, foram apanhados mais de 60 na Universidade da Florida, num esquema que envolvia dois professores que lhes tinham dado perguntas e respostas para os exames, e em 2011 ficou famosa a confissão de Sam Eshaghoff ao 60 Minutos, programa da norte-americana CBS. "Diria que o problema mais fácil de resolver nos exames de admissão à universidade é como fazer batota. Qualquer pessoa com meio cérebro se safa a fazer o exame em nome de outra pessoa", contou. Mesmo com bem mais do que meio cérebro - as notas eram sempre altas - não se safou: foi apanhado e preso depois de ter feito, a troco de 2500 dólares cada, 20 exames. O esquema, confessou, foi montado de boca em boca. Hoje as cábulas são mesmo digitais.

Na China, na semana dos exames de acesso ao ensino superior, sentam-se cerca de dez milhões de alunos e as medidas de segurança são apertadas. Desde 2016 que copiar no gaokao pode valer até sete anos de prisão, nas escolas são instalados scanners que até os sapatos dos alunos vistoriam e a polícia é chamada para controlar comportamentos suspeitos, a alunos e a professores. A internet também não escapa - os sinais de wifi são bloqueados durante as horas em que os candidatos enfrentam o que a Business Insider coloca entre os exames mais difíceis do mundo.

Se na China as medidas de controlo são justificadas como forma de manter a justiça social, neste ano na Argélia as medidas anticábulas nos exames de final de liceu foram reforçadas de forma inusitada. Em 2016, logo às primeiras horas do exame começaram a ser partilhadas online as perguntas e o volume foi tal que as autoridades anularam cerca de 500 mil provas. No ano passado, o Ministério da Educação instalou bloqueadores de sinal para telefones nas 2100 salas de exames. E nem assim. Neste ano as medidas foram ainda mais duras. Durante as três horas dos exames a internet nacional foi mesmo bloqueada, à porta das salas foram instalados detetores de metais para evitar a entrada de telemóveis e o governo ameaçou processar quem ainda assim ajudasse estudantes a tornear as regras.

Preguiça ou astúcia? Crime ou sinal de génio? As opiniões divergem, mas sem consultar cábulas ou fontes fidedignas dá para arriscar que a arte da cábula existe desde o primeiro exame. Será mentira? O leitor que perdoe, mas a verdade é que neste caso os melhores artistas ou confessam ou escapam com nota alta.

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