Bombas, golpes e guerras. A história não para no mês de agosto

É numa máquina do tempo inspirada na de H.G. Wells que, desde Varsóvia em 1944 até Timor em 1999, se encontram exemplos de que nenhum mês é morto. Uma bomba atómica, um golpe de Estado ou a invasão de um país podem muito bem desmentir a ideia de <em>silly season</em>, a temporada em que é suposto não haver notícias,
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Estamos a sobrevoar Varsóvia. É manhã de 3 de agosto de 1944, exatamente há 75 anos. Há combates lá em baixo, com os patriotas polacos a desafiar o ocupante alemão. Dura há três dias já esta Insurreição de Varsóvia, organizada pelo chamado Armia Krajowa, o exército clandestino polaco, que, embora mal armado, acredita que os efeitos combinados do desembarque na Normandia e da operação Bagration lançada a leste por Estaline tiraram o ânimo de resistência dos nazis. Mas nem o Exército Vermelho, que está às portas da cidade, nem os americanos e britânicos, por via aérea, ajudam os revoltosos polacos, muitos deles adolescentes, como bem mostra o filme Varsóvia 1944, que usam a braçadeira que os identifica como soldados para evitar que a sua luta traga represálias sobre os civis. É heroico o combate, mas sabe-se o final: execuções de civis, cidade deixada em escombros, rendição dos polacos. Mas isso será daqui a muitas semanas, já passado agosto, aquele mês quente, pico do verão, em que se imagina que nunca acontece nada, a silly season, como dizem os ingleses. Uma máquina do tempo imaginária vai nestas linhas percorrer alguns acontecimentos dos últimos 75 anos, sim, desde o início da Insurreição de Varsóvia, para mostrar que a história não para nunca, nem sequer em agosto.

Avancemos um ano, e em direção ao Extremo Oriente. Na Europa já não se combate. Hitler suicidou-se no Führerbunker, Berlim está ocupada pelos Aliados e, em Varsóvia, destruída, já se adivinha a chegada da Guerra Fria, pois dois governos no exílio, o de Londres e o de Moscovo, tentam impor-se. A presença das tropas soviéticas decidirá o rumo da Polónia, como de grande parte do leste do continente. A nossa máquina, imaginemos um modelo arcaico copiado da imaginação de H. G. Wells em The Time Machine, sobrevoa agora Tóquio. É 15 de agosto de 1945 e os japoneses ouvem, em choque, a voz do imperador. É a primeira vez, pois o soberano é quase um Deus. Hirohito fala ao seu povo através da rádio. Anuncia a rendição para salvar o país.

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A bravura dos soldados imperiais, também a proteção que as ilhas montanhosas garantem perante uma invasão, nada vale diante da nova arma dos americanos. Hiroxima no dia 5 e Nagasáqui três dias depois foram vítimas da bomba atómica, cidades arrasadas por uma vaga de fogo, dezenas de milhares de mortos imediatos em ambas as cidades, outros milhares nos tempos que se seguiram por causa dessa radiação invisível mas assassina. Se a nossa máquina do tempo existisse mesmo, aqui está uma boa razão para sobrevoar Tóquio e não arriscar ir mais a sul, onde se viu o cogumelo atómico.

Aceleremos um pouco, o século XX foi mesmo preenchido. Ignoremos as décadas de 1950 e 1960 e deixemos agora a máquina imaginária pairar sobre Washington, a 8 de agosto de 1974. Os Estados Unidos, vencedores da Segunda Guerra Mundial, disputam o domínio do mundo com a União Soviética e é a paridade em armas de destruição maciça (o nuclear substituiu o atómico e é ainda mais devastador) que impede que haja uma guerra quente, apesar de todos os pequenos conflitos por procuração. E é uma América ainda traumatizada pela Guerra do Vietname que vive um trauma paralelo: a suspeita de que o seu presidente violou a lei, no mínimo para proteger alguns fiéis que andaram a espiar a sede democrata no edifício Watergate, desde então sinónimo de escândalo. Se Hirohito escolheu a rádio, já Richard Nixon prefere a televisão para comunicar a sua rendição. "Demito-me", diz o presidente, evitando assim uma destituição anunciada, pois muitos republicanos juntaram-se aos democratas. O mais absurdo é que a espionagem no Watergate foi em 1971, para tentar saber algo sobre a campanha para as presidenciais de 1972, e nessas eleições, sem dificuldades, Nixon teve uma vitória esmagadora. E um grande estadista, que pôs os soviéticos à defesa quando viajou até Pequim e convenceu Mao de que a China e a América não tinham de ser inimigos, ficou assim para a história como o Tricky Dicky, o "Ricardinho Manhoso".

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Disco 1990 (sim, esta é uma máquina do tempo da era pré-digital) e marco a Cidade do Koweit no mapa. É o segundo dia de agosto e Saddam Hussein está disposto a acabar com a dinastia Al-Sabbah que reina no Koweit e, apagando as fronteiras, transformar o pequeno país em mais uma província do Iraque. Há combates, mas duram pouco. E há pilhagens. Para soldados de um país como o Iraque empobrecido por oito anos de guerra com o Irão, as lojas cheias de produtos ocidentais são um maná (uns anos mais tarde comprarei em Bagdad um relógio Timex no qual foi colada no mostrador uma foto do bigodudo Saddam). Anexando o Koweit, pensa o presidente iraquiano reforçar a condição de grande produtor de petróleo. O que não imagina é que o mundo vai vir em socorro dos Al-Sabbah.

A América convence as Nações Unidas da necessidade de uma intervenção para repor a legalidade internacional e, ao contrário da tradição, nem soviéticos nem chineses vetam a resolução do Conselho de Segurança. O ultimato de Bush pai será feito e ignorado, e cinco meses depois a "mãe de todas as batalhas" chegará e resultará na expulsão do Exército iraquiano do Koweit, mas não no derrube de Saddam (obra de Bush filho em 2003, o ano em que comprei o tal relógio).

Agora um pequeno salto no tempo, com ida para norte. É 19 de agosto de 1991. Moscovo. Há tanques na rua. Passado pouco, vejo em cima de um desses blindados um homem de farta cabeleira branca. É Boris Yeltsin. Foi um apparatchik toda a vida, mas percebeu que o nacionalismo russo está a caminho de ultrapassar o comunismo soviético. E a tentativa de golpe orquestrada pela ala conservadora do PCUS contra o secretário-geral do partido, Mikhail Gorbachev, está a transformar-se numa vitória de Yeltsin, que enfrentou a rebelião e como presidente da república federativa soviética da Rússia já se prepara para assumir como líder de uma Rússia Independente. Refugiado na datcha, Gorbachev talvez não tenha ainda percebido que as suas reformas, a perestroika, não salvarão a União Soviética. O destino decidiu fazer dele o último presidente desse colosso que se extinguirá no final do ano, e o golpe serviu para mostrar a fraqueza de Gorby junto dos russos, tão grande como é, até hoje, a sua popularidade no Ocidente.

Não são precisas muitas mais viagens no tempo para provar que em agosto se faz história. Mesmos nestes 75 anos a que limitei o vaivém temporal ficaram por visitar acontecimentos como a independência do Paquistão e da Índia, para os primeiros às 24 horas de 14 de agosto, para os segundos às zero horas de dia 15. Se nem na data se entendem, imaginem o que foi definir fronteiras entre o país de Ali Jinnah que queria ser pátria para os muçulmanos da Índia e a Índia de Nehru e Gandhi que pretendia ser para todos apesar da sua maioria hindu. Morreu um milhão de pessoas nas semanas antes e depois da partição do Raj, a Índia britânica.

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Etapa final da máquina do tempo tomada de empréstimo ao britânico H. G. Wells, que morreu num agosto: Timor, dia 30 de agosto de 1999, está quase a fazer 20 anos. Lá em baixo o ambiente é festivo, filas e filas de gente para votar. Mulheres e homens esperam para se pronunciar no referendo organizado pelas Nações Unidas sobre se a antiga colónia portuguesa quer ser uma província da Indonésia ou se prefere a independência. Há também observadores internacionais e uma multidão de jornalistas, e os indonésios, que ocupam o território desde 1975, prometeram respeitar a decisão. Mas se agosto é de festa, setembro será de terror. Com quatro em cada cinco timorenses a votar para ser um país, tropas indonésias e milícias locais pró-integração atacam as populações e obrigam a uma intervenção da comunidade internacional, com Portugal na primeira linha da defesa dos timorenses. A recompensa pela coragem timorense chegará em 2002, com o nascimento do novo país. Em maio, sim, mas com a história a ser determinada neste penúltimo dia de agosto, a tal silly season, ou "temporada pateta", em que é suposto não acontecer nada, nunca, nunca haver grandes notícias.

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