Marine Le Pen festeja com apoiantes a vitória na primeira volta das eleições.
Marine Le Pen festeja com apoiantes a vitória na primeira volta das eleições.EPA/Conta oficial de Marine Le Pen no X

“Nem um só voto.” Jogo de desistências para travar maioria da extrema-direita

Mais de uma centena de candidatos da esquerda que ficaram em terceiro lugar desistem da segunda volta para tentar evitar a maioria absoluta do Reunião Nacional, mas dentro do campo de Emmanuel Macron o cenário não é tão simples apesar dos apelos do presidente.
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A extrema-direita do Reunião Nacional (RN) venceu a primeira volta das eleições legislativas francesas, com os restantes partidos a terem menos de uma semana para evitar que a formação de Marine Le Pen alcance uma maioria absoluta na Assembleia e garanta a chefia do governo ao seu protegido Jordan Bardella. A forma mais simples de tentar evitar esse cenário é a desistência de candidatos onde a corrida é a três (ou até a quatro), para potenciar o voto numa alternativa única ao RN. Mas a “frente republicana” ou o “cordão sanitário” contra a extrema-direita tem buracos. 

“A Reunião Nacional não deve ter nem um só voto” na segunda volta, disse logo no domingo à noite o primeiro-ministro francês Gabriel Attal, avisando que a extrema-direita está “à beira do poder”. Mas no Juntos pela República do presidente Emmanuel Macron, que não foi além do terceiro lugar, há quem considere que a França Insubmissa (FI, extrema-esquerda) é tão perigosa como o RN e recuse desistir a seu favor. 

Na Nova Frente Popular, a aliança de esquerda que inclui a FI, não houve dúvidas: nos casos em que ficaram em terceiro, mais de uma centena de candidatos já tinham desistido esta segunda-feira. Dentro do campo centrista do presidente, as desistências não eram tão fáceis. 

No domingo foram eleitos apenas 76 dos 577 membros da Assembleia Nacional, sendo necessária uma segunda volta nos círculos eleitorais onde um candidato não teve mais de 50% dos votos. Em mais de 300 circunscrições, a corrida do próximo domingo pode ser a três ou mais (as regras ditam que podem participar todos os candidatos que tenham tido mais de 12,5%). Foi a alta participação (67%) que levou a um número tão elevado - por comparação em 2022 só houve oito “triangulares”. 

Nestes casos, entra o apelo ao voto tático. A ideia é o terceiro candidato desistir e apelar ao voto útil no adversário que impeça a vitória da extrema-direita, sendo que na segunda volta o mais votado ganha, mesmo sem 50%. Segundo as contas do Le Monde, esta segunda-feira já tinham desistido 179 candidatos - têm até às 20.00 de hoje para decidir. Destes 121 eram do campo da esquerda, 56 do campo de Macron e um dos Republicanos (a direita conservadora tradicional que foi quarta nas eleições). 

Dentro do Juntos pela República houve quem recusasse dar um passo ao lado a favor da França Insubmissa, mesmo apesar dos apelos do presidente. “É a extrema-direita que está prestes a aceder aos cargos mais altos, mais ninguém”, terá dito Macron numa reunião do governo, segundo o Le Figaro.

O mesmo defendeu o primeiro-ministro numa entrevista à TF1, considerando que uma maioria absoluta do RN seria “catastrófico para os franceses”. Attal deixou claro que a desistência dos candidatos do campo de Macron não significa o apoio à FI. Já Bardella, à mesma estação de televisão, denunciou uma ”aliança contranatura” entre Macron e Jean-Luc Mélenchon (o polémico antigo líder da FI), mostrando-se “surpreendido” que o presidente faça alianças com um partido de “extrema-esquerda violenta que apela à insurreição”. 

Mas os apelos ao voto na alternativa ao RN não são garantia de que os eleitores façam essa escolha. E há locais onde a corrida continua a três - por exemplo, o ex-presidente socialista François Hollande, que teve 38%, vai enfrentar tanto a candidata do RN (31%) como o dos Republicanos (29%). Segundo as contas do Le Monde, ainda estavam previstas 131 “triangulares”.

Mas mesmo se a “frente republicana” travar a maioria absoluta do RN, as divisões entre o campo de Macron e o campo da esquerda tornam complicada uma maioria alternativa para governar, sendo o resultado mais provável um parlamento dividido que deixa o país bloqueado. A Constituição impede Macron de convocar novas eleições no espaço de um ano. 

Independentemente do cenário, o presidente - que não se poderá recandidatar a um novo mandato em 2027 - sai enfraquecido. Além das críticas internas por ter antecipado as eleições (após o desaire nas europeias), fica também diminuído a nível internacional. E falhou numa das mais importantes promessas que tinha feito: travar a ascensão da extrema-direita em França, podendo ficar para sempre ligado à chegada do RN ao poder. 

Jordan Bardella, o candidato da extrema-direita a primeiro-ministro, já indicou que só formará governo se conseguir uma maioria absoluta. Oficialmente, a escolha do chefe do executivo cabe ao presidente, mas uma maioria absoluta do RN tornaria difícil a Macron recusar Bardella, que diz querer ser o primeiro-ministro de todos os franceses. Caso este cenário de confirme, abre-se um período tenso de “coabitação” entre ambos. O presidente prometeu cumprir o seu mandato até ao fim.

Essa coabitação é algo que Macron já estará a preparar, alegadamente querendo mostrar a incapacidade do RN de governar. “Ele acha que dar-lhes metade do poder agora vai impedir que eles tenham todo o poder dentro de três anos”, disse uma fonte ao Le Monde, falando das presidenciais onde Marine Le Pen tentará de novo chegar ao Eliseu (após três candidaturas e dois segundos lugares).

Reações internacionais

As eleições têm um impacto também fora de fronteiras, com o Kremlin a dizer que segue “muito atentamente” o tema. O RN tem sido criticado pela agenda pró-Moscovo e pelo empréstimo de nove milhões de euros que pediu a um banco russo para financiar a campanha de 2014. “Estamos à espera da segunda volta, mas as preferências dos eleitores franceses são mais ou menos claras para nós”, disse o porta-voz, Dmitry Peskov.

“Eles adoram Putin, dinheiro e poder sem controlo”, escreveu o primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, no X. “Isto está a começar a parecer um grande perigo. Não só os resultados da primeira volta das eleições francesas, mas também as informações sobre a influência russa e os serviços russos em muitos partidos radicais de direita na Europa”, acrescentou mais tarde.

Já a homóloga italiana, Giorgia Meloni, defendeu que a “tentativa constante de demonizar os eleitores que não votam à esquerda” está a perder impacto. “Vimos isso em Itália e vemos isso cada vez mais na Europa e em todo o Ocidente”, disse a líder dos Irmãos de Itália.

Já a chefe da diplomacia alemã, Annalena Baerbock, disse que “ninguém pode ficar indiferente” quando “no maior parceiro e amigo” da Alemanha “um partido que vê a Europa como um problema e não a solução” vence as eleições. 

susana.f.salvador@dn.pt 

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