O embaixador que comoveu Portugal na pandemia ao tocar a Grândola ao piano
Rita Chantre / Global Imagens

O embaixador que comoveu Portugal na pandemia ao tocar a Grândola ao piano

Chris Sainty chegou a Lisboa em 2018, no rescaldo do Brexit, na covid ganhou fama com os vídeos a tocar músicas revolucionárias, mas, na hora da despedida, o embaixador do Reino Unido destaca os 650 anos da Aliança Luso-Britânica e a morte de Isabel II entre os momentos marcantes da sua missão.
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Mal entramos na residência do embaixador do Reino Unido em Lisboa, e logo depois dos cumprimentos, Chris Sainty aponta para a sala à sua esquerda e lança a sugestão: “E se fizéssemos a foto ao piano?” Nada de estranhar vindo de alguém que, em plena pandemia, quando o mundo estava confinado em casa, ganhou o carinho dos portugueses com as suas interpretações de E Depois do Adeus e de Grândola Vila Morena. Foi a 25 de abril de 2020. Agora, na hora de se despedir de Portugal após mais de cinco anos no nosso país, o diplomata lembra que foi “por diversão” que decidiu filmar-se a tocar “um par de bonitas canções revolucionárias de 1974”, as senhas do 25 de Abril. Só não esperava a reação: “Nos dias seguintes recebi milhares de mensagens. Não só de pessoas em Portugal, mas de portugueses no Reino Unido. Na verdade de todo o mundo. A agradecer!”, recorda, lembrando que não só deu várias entrevistas aos media portugueses como também no Reino Unido: “Até falei sobre a revolução de 1974 na BBC!”

Este foi apenas um dos episódios de uma passagem por Portugal que incluiu muitos outros: do Brexit, que dominou os primeiros anos de Sainty em Lisboa, à pandemia que o obrigou ao isolamento na residência situada ali entre a Ajuda e a Junqueira enquanto as restrições às viagens deixavam os turistas britânicos longe de Portugal, passando pelas celebrações dos 650 anos da mais antiga aliança do mundo e pela morte de Isabel II e a ascensão ao trono de Carlos III, após mais de 70 anos de reinado da mãe.

Já sentado num sofá de tons cinzentos e diante de um chá fumegante, na mesma sala do palácio setecentista da Calçada da Boa-Hora, Sainty volta aos seus primeiros tempos em Lisboa e admite que não foram fáceis. “Em setembro de 2018 estávamos no meio de uma negociações difíceis entre Londres e Bruxelas. Portugal não era participante direto nessas negociações , mas claro que o processo do Brexit teve grande impacto nas nossas relações com todos os nossos vizinhos e amigos europeus”, admite o embaixador Sainty. Mas “aqui em Portugal considero-me abençoado porque as relações entre os nossos países vão muito para além da União Europeia”.

Sem esconder a felicidade que sentiu quando soube que fora colocado em Lisboa – a primeira vez que estivera no nosso país fora em 1986 ou 87 e “Lisboa era muito diferente nessa altura” –, o diplomata admite contudo que o Brexit dominou os dois primeiros anos da sua missão em Portugal e recorda como sentiu que “o povo português não queria que o Reino Unido saísse. Foi a minha impressão. Senti que Portugal nos valorizava como parceiros em Bruxelas, na UE. E a perspetiva de perder um Estado-membro com opiniões e posições semelhantes foi muito difícil de aceitar para Portugal.” Agora que o processo está finalizado, Sainty admite que o Brexit já começa a parecer passado, mesmo se “vivemos com as consequências da grande decisão que os eleitores britânicos tomaram em 2016”.

Às preocupações com o Brexit logo se seguiram as da covid. E o embaixador Sainty garante que a pandemia global também teve “um forte impacto nas relações entre os dois países”. Sobretudo quando os governos, tanto o britânico como o português, decidiram restringir as viagens – “e isso, claro, teve impacto no sector do turismo, o que teve consequências na economia, tornando-se uma questão política dolorosa”. Afinal, os últimos dados disponíveis mostram que Portugal é o quinto destino de férias preferido dos britânicos, tendo recebido em 2022, já pós-pandemia, 3,6 milhões de visitantes do Reino Unido.

Os números confirmam a visão otimista do embaixador Sainty para o futuro. “Quando começámos a sair da pandemia, tanto o governo português como o britânico sentiram que chegara a hora de nos sentarmos e ter uma conversa séria sobre a relação bilateral, sobre o que queremos alcançar em conjunto no mundo”, recorda.

Velha aliança e cooperação bilateral

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O resultado dessas conversas materializou-se em junho 2022, quando António Costa foi a Londres, onde se reuniu com o então primeiro-ministro Boris Johnson para assinarem a Declaração Conjunta sobre Cooperação Bilateral entre Portugal e o Reino Unido. “Eu estava lá”, recorda o embaixador, sublinhando que foi “um ótimo encontro” e que o acordo assinado entre os dois chefes de Governo “tornou-se na estrutura para a maior parte das coisas que estamos a fazer em conjunto”. No fundo, aquele documento “ajudou-nos a ultrapassar os momentos difíceis dos últimos cinco anos e olhar de forma mais otimista e positiva para o futuro”, explica Sainty.

Mas este não é o único “momento memorável” que o embaixador destaca destes cinco anos. Outro teve lugar em junho último, quando se celebraram 650 anos da Aliança Luso-Britânica. “Foi uma ocasião maravilhosa. O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi a Londres e foi recebido pelo Rei Carlos III no Palácio de Buckingham. Assistimos todos a um serviço de ação de graças no Palácio de St. James”, recordou Sainty. Para ele, estes momentos foram “a demonstração da riqueza, da força, da natureza histórica da relação entre o Reino Unido e Portugal. E deixou-nos uma sensação agradável em relação ao futuro”.

Ora falar da relação entre Portugal e Reino Unido é também falar de duas mulheres: Filipa de Lencastre – a nobre inglesa que casou com D. João I e não só trouxe novos hábitos à corte portuguesa como foi a mãe da Ínclita Geração, o nome que Camões deu aos irmãos entre os quais se destacou não só o futuro rei D. Duarte como o Infante D. Henrique, figura essencial dos Descobrimentos – e Catarina de Bragança, a filha de D. João IV que casou com o rei Carlos II de Inglaterra e ficou para a história não só por ter banalizado o hábito de beber chá mas sobretudo por levar no dote Tânger e Bombaim. “

“Fico sempre impressionado por os portugueses estarem tão bem informados sobre a sua história. Quem me dera poder dizer o mesmo do povo britânico”, afirma Chris Sainty. E acrescenta: “Nós no Reino Unido também damos importância ao facto de termos esta velha aliança com Portugal, mas para vocês aqui em Portugal faz, de certa forma, parte da vossa nacionalidade. Faz sem dúvida parte da vossa História. E isso é maravilhoso”, garante o diplomata. 

E não foi difícil sentir essa ligação dos portugueses ao Reino Unido no dia-a-dia, ao longo destes anos. “Percebi que onde quer que fosse em Portugal, em qualquer cidade, em qualquer aldeia, encontrava alguma ligação ao meu país. E algumas datam de há centenas de anos, são ligações familiares, também dos produtores de vinhos do Porto, por exemplo”, recorda. E vai mais longe. Sublinhando que “há sempre algo interessante na história que nos une”, Chris Sainty garante que “essa é uma das coisas que torna este um dos melhores postos na carreira diplomática”. E “mesmo nas relações modernas, essa relação histórica fornece boas bases”.

Adeus Isabel II, Deus salve o Rei Carlos III

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Verdadeiramente histórico foi o momento da morte da Rainha Isabel II, a 8 de setembro de 2022, após mais de sete décadas de reinado, e a ascensão ao trono do seu filho como rei Carlos III. “Eu estava em Londres no dia em que ela morreu”, recorda Chris Sainty, “estava a regressar a Portugal quando alguém me ligou a dar a notícia. Tinha acabado de ser anunciado e vi a enorme onda de emoção que percorreu a multidão que enchia o terminal de Heathrow”. 

Com 96 anos, os britânicos, claro, sabiam que a Rainha que a larga maioria deles conhecera a vida toda, teria partir. “Sabíamos que ela não ia viver para sempre. Mas no fundo dos nossos corações achávamos que devia”, explica Chris Sainty com um sorriso nostálgico. Pouco antes, fez mesmo questão de posar para uma fotografia com uma pintura da monarca que adorna uma das paredes da residência.

O que os britânicos talvez não esperassem e que também surpreendeu o embaixador Sainty foi a forma como fora do Reino Unido e dos países da Commonwealth que também a tinham como monarca, o mundo reagiu emocionado à morte de Isabel. “O que não esperávamos era o quanto a nossa rainha era amada noutras partes do mundo que não têm essas relações institucionais com o Estado britânico”, admite Chris Sainty. 

E de tal forma ficaram os portugueses emocionados com a morte de Isabel II que “durante dias, talvez mesmo durante semanas, recebemos na embaixada mensagens de condolências, vindas de todo o país. E, claro, o vosso presidente esteve presente no funeral”. 

Marcelo Rebelo de Sousa também não faltou na residência do embaixador britânico, onde assinou o livro de condolências. “O presidente esteve aqui e tivemos uma conversa em que ele recordou a sua audiência com a rainha em 2016”, lembrou Chris Sainty. 

Marcelo Rebelo de Sousa tinha sido eleito há dez meses e o referendo do Brexit ocorrera há apenas cinco quando o presidente português foi recebido numa audiência privada por Isabel II no Palácio de Buckingham. Na conversa com a monarca, o presidente fez rir Isabel II ao lembrar-lhe que esteve presente quando esta veio a Portugal pela primeira vez, em fevereiro de 1957. “Estava na primeira fila e era uma criança na altura”, afirmou o chefe de Estado. 

Para o embaixador Sainty, não há dúvidas que a família real passou por alguns momentos difíceis ao longo dos anos, mas o amor por Isabel II nunca foi posto em causa. O que não impediu os britânicos de rapidamente terem de se habituar à ideia de ter um novo rei. “Conhecemo-lo bem. Ele anda por aí há muitos anos e já tinha causado uma impressão profunda na nossa nação”, afirma o diplomata sobre Carlos III, garantindo que o povo britânico se sente “muito orgulhoso da forma como sucedeu à mãe”. 

Em maio passado, o embaixador Sainty assinalou ali mesmo, na residência, a coroação de Carlos III num evento “muito alegre”, afinal não acontecia “há mais de 70 anos!” E para o diplomata, a reação dos portugueses à chegada ao trono do quase eterno príncipe herdeiro é uma nova mostra da união entre os dois países – “foi mais uma forma de a amizade entre os nossos dois países se manifestar, como acontecera de tantas outras”. 

Com a despedida a aproximar-se – em janeiro, Sainty vai passar a pasta à sua sucessora, Lisa Bandari – o embaixador está decidido a aproveitar até ao fim. Por isso o Natal este ano é em Lisboa, com a mulher, Sarah, e com os três filhos a virem juntar-se ao casal. 

Os cinco anos do embaixador Sainty em Portugal foram de estabilidade política no nosso país, com António Costa no poder havia já três anos quando ele chegou, e Marcelo Rebelo de Sousa a ocupar a chefia do Estado desde 2016. Mas a despedida corresponde a mudanças políticas por cá, com eleições em março após a demissão de Costa a 7 de novembro. Com os seus 650 anos, a relação luso-britânica é mais forte do que qualquer mudança de governo, ou não? “Não tinha pensado nisso assim, mas é verdade. Quando temos o peso da história e tantos grandes acontecimentos no nosso passado que nos unem, não importa quem é o primeiro-ministro, num ou no outro país”, afirma Chris Sainty. 

Para o diplomata, a relação vai muito para além dos governos, “tem a ver com as pessoas”. E neste momento há, oficialmente, mais de 400 mil portugueses a viver no Reino Unido e 45 mil britânicos a viver em Portugal – mas os números reais serão mais elevados. “Por isso já uma ligação tremenda entre os nossos povos, entre as nossas comunidades.” 

Para rematar, o que mais o surpreendeu em Portugal e nos portugueses? “Para todo o lado onde fui encontrei tanta simpatia, tanta amizade”, recorda Chris Sainty, que apesar de ter preferido o inglês para esta conversa, fala um excelente português. O diplomata não tem dúvidas: “o mais impressionante para mim foi o calor do povo português em relação aos britânicos, é um verdadeiro privilégio para nós”. Quanto ao futuro, certo de que a velha aliança ainda tem muito para dar, o embaixador acredita que é na resposta à emergência climática e nas energias renováveis que podemos desenvolver ainda mais a nossa relação. “Podemos aprender tanto uns com os outros e ao fazê-lo, liderar o resto do mundo, ou pelo menos o resto da Europa”.

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