Ilustração: Vítor Higgs
Ilustração: Vítor Higgs

Paco Bandeira: uma vida de cantigas

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Quem o viu e quem o vê, a Francisco “Paco” Bandeira, o cantor alentejano outrora tão famoso que acabou condenado a três anos e quatro meses de cadeia, com pena suspensa, por violência doméstica e que, por causa disso, ainda hoje sofre a mais infamante das sanções, a do ostracismo e da condenação social, ou moral.  

Em entrevista a Fátima Lopes, da TVI ("A Tarde é Sua", de 27/10/2017), e antes de entoar, a pedido, “A Ternura dos 40”, um dos seus maiores êxitos, Paco Bandeira falou de um abominável erro judiciário, da incompetência das juízas que o condenaram por violência psicológica contra a ex-companheira Maria Roseta Ferreira, materializada em insultos e agressões verbais com recurso a expressões como “rameira”, “cabra” e “puta”, que ele nega a pés juntos, dizendo não usar tais termos no seu linguajar corrente, e coerente.

De caminho, o autor de “Entre o Céu e o Inferno” foi também condenado por posse de arma proibida, um velho “canhangulo” que trouxe da guerra de África e que tinha pendurado na sala de estar de sua casa, por cima da lareira. A crer no seu testemunho, foi igualmente acusado – e condenado – por maus-tratos a um Ruben e a um Diogo, que ele assevera não saber quem são e que, jura, não constavam sequer do processo, resultando de um desastrado copy/paste do texto de outra sentença para a decisão que o condenou. Se isto fosse verdade, seria grave, sem dúvida. Simplesmente, no acórdão do Tribunal Judicial de Oeiras, de 13 de Julho de 2012, não existe qualquer referência a um Ruben nem a um Diogo, pelo que não se compreendem aquelas afirmações de Paco Bandeira, feitas em diversas ocasiões, como na citada entrevista a Fátima Lopes ou numa outra, de Julho de 2015, à TV Amadora.

Mais grave do que a pena do Tribunal de Oeiras – confirmada, note-se, pela Relação de Lisboa –, foi a sanção social: Paco, que até então, segundo o próprio, era um dos artistas mais populares e mais bem pagos do país, caiu em desgraça e ruína, viu serem-lhe cancelados todos os espectáculos, devolvidos milhares de discos, perdidos muitos contratos. À jornalista Sofia Pinto Coelho, para o programa "Vidas Suspensas", da SIC, de 2/12/2018, mostrou os sinais do seu infortúnio, patentes nos estúdios em Massamá, que pôs à venda, porque nem dinheiro tinha para pagar a luz, o mesmo sucedendo a outros estúdios que possuía em Montemor-o-Novo, também fechados, e onde Sakamoto chegou a gravar. Pior do que isso, três ou quatro dezenas de pessoas, entre músicos e funcionários, tiveram de ser despedidas, por óbvia falta de verbas.   

É uma história extraordinária. Contra Paco militava o facto de a sua primeira mulher, Maria Fernanda (Maria Fernanda Mocinha Castelo Bandeira), com quem se casara aos 17 anos e da qual tinha duas filhas, se ter suicidado diante dele, em 10 de Março de 1996, na sua Quinta da Bela Vista, em Lourel, Sintra, e numa cena macabra: quando ambos se preparavam para ir aos festejos da tomada de posse de Jorge Sampaio como Presidente da República, desencadeou-se uma violenta discussão conjugal, ao que parece porque uma das filhas do casal passara uns cheques falsificados para aplacar o vício da droga. No decurso da refrega, Fernanda foi buscar uma arma que ele tinha no carro – mais precisamente, um revólver Taurus, de 32mm, de origem brasileira – e deu um tiro na cabeça, morrendo pouco depois. Um dos irmãos da vítima, Fernando Luís Castelo, nunca acreditou na tese do suicídio e chegou até a contratar os serviços de um famoso causídico elvense, Hugo Marçal, outrora implicado no “processo Casa Pia”, mas reagiu tardiamente, quando tudo estava prescrito, e acabou acusado de difamação por parte do ex-cunhado. Não seria o primeiro, nem o último, processo de Paco nos tribunais. Antes disso, envolvera-se num conflito com José Maria Pereira, operário da construção civil, com este a acusá-lo de falta de uns pagamentos e Bandeira a dizer que Pereira o chantageara; mais tarde, seria condenado a oito de meses de prisão por emissão de um cheque sem cobertura, mas o crime foi amnistiado em 1989; e, em 2007, foi acusado pela administração da RTP, na altura liderada por Almerindo Marques, por ter alegadamente desviado material dos estúdios da televisão pública para a sua empresa, a Profissom, processo que acabou arquivado (cf. Margarida Davim, Violência Silenciosa. A história das mulheres na mira de Paco Bandeira, 2012).  

Oito meses depois da morte da mulher com quem esteve casado 35 anos, Paco conheceria Maria Roseta Ferreira, 17 anos mais nova, técnica dos Serviços Prisionais, com a qual teve uma relação fria e distante, garante ele, mas ainda assim capaz de gerar uma filha Constança (Maria Constança Ferreira Marialva Bandeiras), nascida em 14 de Fevereiro de 1999, a qual seria uma testemunha-chave no processo contra o pai (que, entretanto, perfilhara uma outra jovem, Ângela, nascida em 1970, de uma relação fugaz). Na altura, Constança tinha 12 anos, mas, mal atingiu os 18, disse que a mãe a manipulara e, inclusive, intentou um processo contra ela, acusando-a de maus-tratos psicológicos. Mais: Constança foi viver para Oeiras com Paco e com a nova mulher deste, a taróloga Gisela de Jesus, e o cantor foi sua testemunha no processo contra a mãe (cf. VIP, de 28/11/2018). 

De permeio, houve outra mulher, Marisa de Almeida, professora do 1.º ciclo, 28 anos mais nova, que começou por defender o cantor das acusações de violência doméstica, mas que depois, terminada a relação entre ambos (ao que parece, por causa de uma cena de ciúmes no decurso de um jantar na Taverna dos Trovadores), foi ao ponto de insinuar que Paco teria matado a primeira mulher (“agora ponho em causa se realmente a primeira mulher se suicidou”), afirmando ainda que o autor de “O Alentejo Quer Um Homem Que Saiba Mandar” (Decca, 1975) era “um homem sem sentimentos”, que se considerava “omnipotente” (cf. VIP, de 10/12/2012). Em contraste, Gisela não poupa elogios ao marido, com quem está casada desde 2014, sem que até agora se registem indícios de violências ou de maus-tratos de espécie alguma.  

Pobre diabo ou diabo pobre: como sempre sucede com estas figuras mediáticas, o processo de Paco Bandeira dividiu os ânimos e as opiniões. No Facebook, surgiram grupos pró-inocência (“Paco Bandeira, em Legítima Defesa”) e outros de teor oposto (“Não Acredito na Inocência de Paco Bandeira” ou “Paco Bandeira Facts”), e uma jornalista do Sol, Margarida Davim, chegou até a publicar um livro intitulado Violência Solitária, atrás citado, cheio de pormenores sórdidos, como uma discussão conjugal gerada por causa de um naco de picanha deixado a descongelar ao ar livre, os loucos ciúmes de Paco em relação ao sacerdote que baptizara a sua filha, a afirmação do cantor de que a sua companheira tinha “tudo do bom e do melhor” e que o casal fazia “compras nos melhores centros comerciais do mundo”, as várias armas e munições que Bandeira tinha no seu monte, as sucessivas queixas e súplicas que Maria Roseta fez a António de Almeida Santos, amigo do cantor e padrinho de Constança, com o histórico dirigente socialista a aconselhar-lhe que tivesse calma e que compreendesse o génio singular do seu companheiro, outras queixas feitas a Armando Vara e à então mulher deste, Helena Mendes, que tinham um monte por perto, com Vara a dizer-lhe igualmente para ter calma perante os violentos gestos do trovador trastagano. Em tribunal ficou provado que, uma semana volvida sobre o baptizado de Constança, Paco encostou um revólver à cabeça de Maria Roseta, e, a seguir, telefonou à irmã desta para que a fosse buscar ao monte, já que ele a ia “rebentar”. Como também ficou provado que, cego de ciúmes pelo padre celebrante, chamou “prostituta” a Roseta no próprio dia do baptizado de Constança.

Noutra ocasião, pegou num solitário para desferir com ele uma pancada na cabeça de Maria Roseta, só parando ante os insistentes pedidos da pequena Constança, lavada em lágrimas. Acto contínuo, Bandeira pegou numa cadeira e desfê-la em pedaços, enquanto gritava que ia atirar Maria Roseta pela janela. Noutra ocasião, e sempre em frente da filha, atirou um copo ao chão, que se partiu junto a Maria Roseta, ferindo-a. Às tantas, quando já viviam na casa de Oeiras, Maria Roseta guardou as facas da cozinha e a mãe e a filha, apavoradas, passaram a dormir juntas no mesmo quarto, fechadas à chave e com os móveis encostados à porta. Quando Constança tinha oito, nove anos, Paco ter-lhe-á dito, como ficou provado no acórdão que o condenou, que não tinha desejado que ela nascesse, mas que ficou feliz quando a viu no mundo. Maria Roseta passou a receber tratamento psiquiátrico e Constança foi alvo de acompanhamento psicológico na escola, pois tinha comportamentos rebeldes que prejudicavam o seu rendimento nos estudos. Em suma, concluiu a justiça, “o arguido actuava condicionando o comportamento e a vida da assistente, Maria Roseta, amedrontando-a, insultando-a e humilhando-a, fazendo-o de forma deliberada, livre e consciente” e “Maria Roseta, bem como a sua filha Maria Constança – que a tudo assistiu na residência do casal –, viveram num ambiente de sofrimento e dor, temendo a primeira, desde finais de 2008 e até à saída de casa, pela sua vida.” Mas também ficou provado, e é importante ser dito, que “o arguido gosta de Maria Constança” e que “a menor Constança gosta do pai”. 

Independentemente de sabermos se Paco Bandeira era culpado ou inocente, o facto é que foi condenado em primeira e segunda instâncias. Mas também é facto que foi, sobretudo e acima de tudo, condenado sumária e eternamente pela opinião pública. Pior ainda: se Portugal inteiro ficou a saber da sua condenação por violência psicológica sobre a ex-companheira, já poucos conheceram os desenvolvimentos ulteriores da história, com destaque para a radical mudança de Constança, que se queixou de ter sido manipulada em criança. Casos como este são comuns e frequentes e, na verdade, por todo o mundo ocorrem trials by newspaper; simplesmente, num país paroquial e pequeno como o nosso, tornam-se particularmente letais e lesivos, pois as suas vítimas jamais se levantam, restando-lhes tão-só emigrarem para o estrangeiro ou exilarem-se internamente, como Paco fez, refugiando-se no seu Monte do Cortiço, em Montemor-o-Novo, onde hoje vive feliz na companhia de Gisela e, de quando em vez, das filhas, dos netos e dos bisnetos. 

Levanta-se cedo, cuida dos cavalos e da horta, por regra almoça fora, e depois faz a sesta. Nos intervalos, compõe músicas e escreve muito, quase sempre para a gaveta, não sendo clara a sua situação financeira: numas entrevistas, como a que concedeu a Sofia Pinto Coelho, diz que vai sobrevivendo frugalmente graças à sua reforma, daquilo que a mulher ganha, crê-se com consultas de tarologia, e da venda de produtos da sua quinta; noutras declarações, porém, afirma que reequilibrou as finanças e que até tem uma “vida desafogada”, acrescentando ainda que “se tivesse de me desfazer de tudo o que tenho ia buscar milhões” (cf. Flash!, de 21/11/2018). 

Ilustração: Vítor Higgs

Paco Bandeira, nome artístico de Francisco Veredas Bandeiras, nasceu em Elvas, freguesia de Alcáçova, às oito da manhã do dia 2 de Maio de 1945, gostando de dizer, vá-se lá saber porquê, que viu a luz 48 horas depois de Hitler se ter suicidado em Berlim. Filho de Francisco José Bandeiras e de Maria Rosa Veredas, trabalhadores rurais que comerciavam fruta e gado (“nasci de pais analfabetos, pobres, tementes a Deus, à PIDE e aos costumes”), a mãe sonhava que ele, o mais novo dos seus rapazes, tivesse uma “profissão debaixo de telha”, em que não sofresse as agruras do labor no campo, ao contrário dos outros filhos. Almejava Maria Rosa que o seu menino se tornasse alfaiate ou sacerdote, razão pela qual o pequeno Francisco, depois de ter feito a primária em Elvas, seguiu como aluno externo do Seminário de Vila Viçosa, onde “foi muito bem tratado” (“foi bom, porque comia bem e tomava banho de água quente”). Já antes, por volta dos oito, nove anos, o cego Ti Januário Pinto, dono de uma barbearia em Elvas, dera-lhe umas luzes de guitarra de fado, mas foi no seminário, com o padre António Emílio, que Paco aprendeu a valer, até sobre história da música, dos trovadores a Stravinsky. Cedo percebeu, porém, que não tinha vocação para sacerdote ou, como diria mais tarde, com ponta de imodéstia, “nunca podia ser um bom padre pois sou demasiado cristão”. Trocou o seminário pela Escola Comercial, em Elvas, e aí concluiu o curso, mas já então, confessa, “andava com a mania da música”.  

Aos 16 anos, ganhou um festival em Almendralejo, Espanha, e, pouco depois, tornou-se locutor da Radio Extremadura Badajoz, muito ouvida do lado de cá da fronteira. Talvez por isso, acabou apadrinhado por dois terratenentes elvenses, António José Bagulho e Francisco Caldeira, em cujas festas cantava êxitos hispano-americanos (“Guantamera”, “Cucurrucucu Paloma”, “Angelitos Negros”, “Granada”), fandangos de Porrina de Badajoz, de Juanito Valderrama e de Manolo Escobar, e fados de Marceneiro e Carlos Ramos. Foram os seus “mecenas”, diz ele. Além de o ajudarem a comprar os instrumentos de que precisava para o seu ofício canoro, pagavam-lhe generosamente por cada actuação: em 1961, 500 escudos, “o dobro do ordenado mínimo nacional” na altura (um detalhe histórico: na altura ainda não existia salário mínimo nacional, só instituído após o 25 de Abril, pelo decreto-lei n.º 217/74, de 27 de Maio). Contudo, e apesar de reconhecer que foram “boa gente” para ele, Paco não deixa de recordar a “tirania de classe” daqueles lavradores alentejanos, e a opressão a que sujeitavam ganhões, malteses e demais trabalhadores campestres. 

Já então era do contra. Um dia após o julgamento, em Espanha, do processo do assassinato de Humberto Delgado, disse aos microfones da Rádio Extremadura os nomes dos implicados – Rosa Casaco, Ernesto Lopes Ramos, Casimiro Monteiro, Agostinho Tienza, este último seu conterrâneo –, o que lhe valeu que, no regresso a Portugal, fosse parado no Caia pelo inspector Mouro e pelo chefe Lionel, entre outros. Levado à delegação elvense da polícia de Salazar, foi acusado de engajador, preso durante uma semana e alvo de valente sova, que o deixou sem um dente, por um lado, e com um olho negro, por outro. Valeu-lhe o dr. Cabeças, delegado de saúde e amigo da família, cuja intervenção o salvou de ser transferido para Lisboa, onde, diz ele, o aguardavam sevícias maiores, ou piores, como aquelas de que foi alvo o seu irmão António, obrigado a seguir o ofício de cauteleiro, por a PIDE lhe ter partido as pernas e deixado coxo para toda a vida.   

Foi em Espanha que ganhou o seu nome artístico, Paco Bandeira, quando começou a tocar numa grande orquestra de Badajoz, a Montecarlo, após o que fundou, com quatro amigos do país vizinho (Jesús Herrero, Emilio Alba, Dani e Puti), um bem-sucedido conjunto rock, os Play Boys, do qual hoje não se orgulha (porém, o seu primeiro grupo foi outro, os 5 do Alentejo, formado com Martinho Garrido, que “como músico era fraquito”, Lela Calhau, baterista, e Manuela Subtil, vocalista principal, “não porque cantasse lá muito bem, mas era uma rapariga com outros dotes, o que para a época era grande parte do nosso sucesso”). 

Às tantas, os Play Boys começaram a tocar em festas ao lado dos Cuban Boys ou, melhor dito, dos Havana Cuban Boys, orquestra de foragidos do castrismo liderada por Armando Oréfiche, cognominado o “Gershwin de Cuba”. Famoso compositor e pianista, Oréfiche era um homossexual assumido que praticamente adoptou o jovem elvense de 18 anos, levando-o a tocar em cruzeiros pelo mundo fora, Japão e Austrália incluídos. Paco assevera, muito macho, que “não tinha nenhuma vocação para aquilo que ele queria”, e atribui a sua meteórica ascensão na banda não a quaisquer favores intimíssimos que tenha prestado ao padrinho, mas a um episódio curioso: a dada altura, a mulher do astro, o grande Antonio Machín, decidiu fugir com outro e, como Machín foi no encalço dela, Oréfich deu o lugar vago ao protegido, que subitamente foi elevado à categoria de substituto da lendária voz de “El Manisero”, o estrondoso son-pregón cubano de 1930, na América traduzido por “The Peanut Vendor” (= “O Vendedor de Amendoins”).  

Depois veio o serviço militar e, conta ele, “acabou-se a vida fácil, a vida faustosa do rapaz deslumbrado” (“À Conversa com… Paco Bandeira”, Kuriakos TV).   Fez a recruta em Beja e tirou a especialidade no Porto, onde, por ser músico, um coronel amigo lhe permitiu trajar à civil na rua e não ter de pernoitar no quartel. Passaria três anos na “maldita tropa” e foi colocado em Angola durante 28 meses, como radiotelegrafista, onde continuou a cantar e a dar espectáculos para os soldados com guitarras fornecidas pelo Movimento Nacional Feminino, de Cilinha Supico Pinto. Aí conheceu e foi camarada de um “pobre diabo”, Emanuel Gomes, mais tarde imortalizado com o nome artístico “Dr. Lesagi Zandinga”, o célebre tarólogo/bruxo/vidente. Regressaria a Lisboa em 1969, coberto de cicatrizes na alma e no corpo. Enumera-as uma a uma: gastrite crónica atrófica com metaplasia, colite crónica, doença psiquiátrica do tipo epilepsia pós-traumática, enxaquecas crónicas, problemas de coluna provocados pelo peso do rádio, que obrigariam a ter operações à dita. Mal chegou à metrópole foi intervencionado no apêndice e na garganta.

A seguir, e com a família a cargo, andou aos tombos entre o Nina e a Tágide, cantou uns tempos no Solar da Hermínia (Silva), ao Bairro Alto, mas acabou por rumar à Alemanha, onde trabalhou na ZDF, além de actuar em bodegas de flamenco de Frankfurt, o que, tudo por junto, lhe permitiu ganhar bom dinheiro e, ao fim de quatro meses, comprar até um carrito (um Austin Morris, depois substituído por um BMW). Nunca perdeu a paixão da música e, não por acaso, foi com uma canção intitulada “Sigo Cantando” que teve o seu primeiro triunfo, vencendo a edição de estreia do Festival de Canção da Guarda, em Julho de 1971.

No ano seguinte, e já com outro estatuto, regressou ao Solar da Hermínia, sua madrinha, e, no Festival da Canção, conquistou um belíssimo segundo lugar com “Vamos Cantar de Pé”, música de Pedro Osório e letra de Fernando Grave (obteve 77 pontos, a considerável distância dos 277 pontos do vencedor, Carlos Mendes, com “A Festa da Vida”, de Calvário/Niza). Em 1973, voltou a ficar em segundo, mas desta vez mais próximo do número um: “É Por Isso Que Eu Vivo”, com música de Paco e letra de Ary, teve 111 pontos, muito perto da “Tourada” de Tordo e também de Ary.  

Falando dos tempos do antigo regime, diz que a censura e a perseguição política aos artistas têm muito de mito e de fábula. Segundo ele, o alvo era só um, mais nenhum, Zeca Afonso, e, conta Paco, o próprio Adriano Correia de Oliveira andava furioso por nunca ter sido preso, ao contrário dele, Bandeira, que, além do episódio em Elvas, seria detido em público pela PIDE, no Luso, por ter dito uma anedota sobre Américo Thomaz e entoado a cantiga subversiva, da sua autoria, “Lá Longe Onde o Sol Castiga Mais”. 

São desse tempo os seus desencontros com os “cantautores”, que verberavam o facto de o alentejano ter resvalado no nacional-cançonetismo. Na sua autobiografia (Juramento de Bandeira: Biografia não autorizada de Paco Bandeira, 2020), Paco orgulha-se de ter conhecido gente importante, como Antunes da Silva, Manuel da Fonseca, Eduardo Olímpio, Fernando Assis Pacheco, Mário Cesariny, Joaquim Pessoa, Ary dos Santos, mas não esconde que, nos concertos com Lopes Graça, Adriano, José Barata-Moura ou Zeca Afonso, estes olhavam-no “de lado, ou com desdém” e que, um dia, num concerto numa associação de pescadores em Setúbal, Zeca invectivou o seu estilo e a sua postura, dizendo-lhe que deveria antes pôr os seus dotes ao serviço do povo-trabalhador (sobre as ferozes críticas ao trabalho e ao estilo de Bandeira, cf. o delicioso e recente livro A Revolução Antes da Revolução. O ano que mudou a música popular portuguesa, de Luís de Freitas Branco). Após o 25 de Abril, e enquanto produzia músicas como “Batalha-Povo” ou “Em Guarda Pela Revolução”, tentou actuar no Encontro de Canto Livre, mas foi escorraçado pela plateia, segundo ele a instâncias de José Jorge Letria, seu arqui-inimigo, com quem iria confrontar-se violentamente, nos anos 1990, na guerra pela Sociedade Portuguesa de Autores, travada entre a sua linha, e a do advogado Luso Soares, e a de Luiz Francisco Rebello/Letria/Fausto/Saramago, contenda que passou, inclusive, por queixas-crime e ardentes lutas judiciais.

Ideologicamente, diz ser um homem de esquerda, de muita esquerda, mas mostra-se anti-PCP, dizendo, aliás, que “o comunismo foi uma criação da família Rothschild para derrubar o czar Nicolau”, em vingança por este não ter permitido que o tenebroso clã judaico dominasse o Banco da Rússia. Foi à União Soviética na companhia de Pedro Osório, regressou ainda de lá mais convicto do seu anticomunismo. Critica o “comunismo folclórico” do PCP e de este continuar a “usar a fórmula capitalista”, patente no seu vasto património imobiliário, ademais isento de IMI.

Entende que os jornalistas do antigamente eram muito melhores do que os de hoje, e que estes não passam de “marionetas da alta finança”, do mesmo passo que, em nome do povo e “dos que trabalham”, fustiga os “papagaios que foram à universidade aprender a roubar melhor”. Numa entrevista à TV Amadora, concedida no auge da crise das dívidas soberanas, explicou que à Alemanha não interessava que Portugal produzisse e se desenvolvesse, fustigou “os políticos que temos” e clamou que Portugal caminhava para o abismo. Num registo violentíssimo, disse que Angela Merkel “era pior do que o Hitler” e acusou Pedro Passos Coelho de “crime de traição à pátria”, estranhou que ainda não se tivesse “suicidado de vergonha”, afirmou que o primeiro-ministro não pagava impostos. Disse, inclusive, que se “houve violência doméstica em Portugal, foi com ele, a Fá [Fátima Padinha], que é minha amiga, levou tareia a torto e a direito” e que, quando foi presidente da JSD, Passos “usou as raparigas do partido como se fizessem parte do bordel do comité central” (sic). 

Em 2010, destruiu 50 mil discos da sua autoria, numa original acção de protesto contra várias coisas: o download ilegal de canções, o limitado espaço concedido à música portuguesa nas nossas rádios e o facto de as Finanças lhe quererem cobrar direitos pela oferta de milhares de discos à Guiné-Bissau, combinada com o Presidente Nino Vieira em casa de Almeida Santos, amigo, compadre e prefaciador do seu livro O Canto do Espelho, de 2007, o ano em que Paco deu um concerto no Coliseu de Elvas, que afirmou marcar ponto final na sua carreira, pelo menos no que a discos dizia respeito. Em 2011, porém, acabou por lançar um novo CD, “Tudo no Mundo É Caminho”.  

Ao longo de uma carreira em que deu milhares de concertos pelo mundo fora, participou em programas de televisão no Brasil, na Turquia, na Bulgária e em Israel, e, graças a Thilo Krassman, escreveu a banda sonora de várias novelas e séries, como “Roseira Brava”, “Primeiro Amor”, “Vidas de Sal”, “Filhos do Vento”, “Os Lobos”, “A Grande Aposta”, entre outras. Fez a primeira parte de concertos de Johnny Cash e de Hermínia Silva e Joan Baez chegou a oferecer-lhe uma guitarra. Em 1987, envolveu-se numa acesa polémica com a RTP e, por essa altura, demitiu-se da direcção da Sociedade Portuguesa de Autores em protesto por ter sido chumbada uma moção para que, imagine-se, o seu principal êxito – “A Minha Cidade”, mais conhecida por “Oh Elvas Oh Elvas”, a partir de uma frase de António Sardinha – fosse adoptado como hino nacional. Passou pelo MDP/CDE e, não muito depois, começou a navegar nas águas do PS, onde fez muitos amigos: além de Almeida Santos, Soares era visita da sua casa em Sintra e, em 1999, quando comemorou os 30 anos de carreira, contou com testemunhos de Almeida Santos, claro, mas também de José Lello e de Fernando Gomes, de Humberto Coelho, de Lídia Jorge, de Raul Solnado e de Eusébio. Por volta de 2007, quando deu por finda a carreira, alimentou o projecto de abrir um canal com o nome Televisão do Sul, em parceria com Rui Nabeiro, Moita Flores, Nicolau Breyner e António Saleiro, o polémico autarca socialista de Almodôvar, que, além de suspeitas de corrupção, chegou a ser investigado no caso da morte de António Colaço, vereador daquela localidade. 

Desde que foi condenado, Paco passou a disparar contra dois alvos, os profissionais da imprensa, que considera que se vingaram dele por ter denunciado o mau jornalismo em Portugal (Público, de 10/1/2012), e sobretudo os juízes, que diz serem “piores do que a PIDE”, falando de “uma cáfila de javardolas que vestem toga e que utilizam a toga para a sua maldade” (dos magistrados nacionais, ressalva, porém, um nome, o do seu “grande amigo” Rui Rangel, que considera ser “um tipo honesto” e pelo qual afirmou ter “muito respeito como juiz”).  

Paco Bandeira, que jogou ténis e futebol pelo Belenenses, garante que viu um OVNI à saída de Castelo Novo, quando seguia ao volante de um Porsche na companhia de uma ex-bailarina russa. “Paco Bandeira é um homem de convicções firmes ou ser conflituoso?”, perguntava o Público em 2012, dúvida que ainda persiste, mas que hoje pouco importa. Na sua autobiografia, ataca coisas tão intrigantes como “a pepineira do show of dos apresentadores de televisão”, “a vilanagem financeira da dívida calada” ou “o franchaisinguismo hétero fóbico”. Recorda que, quando era criança, uma cigana disse à sua mãe que o filho tinha herdado o espírito do bisavô, que Paco define “um safado, contrabandista, mulherengo, pelos vistos um daqueles espécimes belos e aventureiros que tanto agradam às mulheres ricas e finas, como era o caso”. 

Não nos compete dizer se, ao longo da sua atribulada existência, Paco cumpriu, ou não, aquela profecia da velha cigana. Também não sabemos – e já o dissemos – se era culpado ou inocente pelos crimes de que saiu em primeira e em segunda instância. Do muito que fala e diz, por vezes ao desbarato, só o próprio conseguirá determinar o que será mesmo verdade e o que radica já no reino da fantasia. Daquilo que nós sabemos, porque estudámos e lemos, apenas um episódio: em várias ocasiões, seja na autobiografia, seja em entrevistas, Paco Bandeira referiu que, na qualidade de locutor da Radio Extremadura, fez a cobertura jornalística do processo do homicídio de Humberto Delgado e da sua secretária, que correu termos no Tribunal de Badajoz. E mais afirma que o juiz da causa, Don Francisco de Naranjo, produziu uma sentença histórica: “os assassinos foram condenados à morte, desde que ao alcance das armas”. Isto é, assevera Paco, sem pestanejar, um juiz do franquismo condenou à morte os sicários da PIDE, desde que a partir de Espanha conseguissem atingi-los à bala, estando estes do lado de cá da fronteira (!).

Sucede, porém, que do processo do homicídio de Delgado, hoje publicado em livro, não consta nenhum juiz Francisco Naranjo – o magistrado responsável foi José María Crespo Márquez – como não consta, é óbvio, aquela bizarra sentença (cf. Juan Carlos Jiménez Redondo, El caso Humberto Delgado. Sumario del proceso penal español, Mérida, 2001; Id., El outro caso Humberto Delgado. Archivos policiales y de información, Mérida, 2003; cf. ainda Frederico Delgado Rosa, Humberto Delgado. Biografia do general sem medo, Lisboa, 2008, pp. 1164ss; o juiz Crespo Márquez foi, inclusive, entrevistado pela RTP, em 6/10/1992). Para dizer o mínimo, não sabemos onde Paco Bandeira foi buscar aquela mirabolante e descabelada história, contada até com abundante cópia de pormenores.

Uma história que, sublinhe-se, não é coisa de somenos, pois o cantor garante que foi ela que esteve na base da sua detenção na fronteira do Caia e na sua prisão e tortura, em Elvas, pela PIDE, em cujos arquivos da Torre do Tombo, seja nos arquivos dos Serviços Centrais, CI (2), seja nos diversos postos daquela polícia política, seja ainda no arquivo da Legião Portuguesa, não consta qualquer referência a Francisco Veredas Bandeiras. Ficamos, portanto, na dúvida, mais do que pertinente e legítima, sobre quem será afinal este homem, a um tempo solar e sorridente, mas a outro tão lunar e obscuro.  

*Prova de vida (50) faz parte de uma série de perfis


Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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